Dizem que, quando começamos a nos interessar por algo, os olhos ganham uma espécie de agudeza quase sobrenatural para localizar o que a mente mais deseja.
Faz sentido: os olhos, afinal, são grudados à imaginação e tem por objetivo nos guiar pelas manifestações físicas do que ela concebe em seu estado quase onírico de liberdade constante.
Correr em trilhas é um exemplo perfeito disso.
Quando sequer se sabe da existência desse esporte, trilhas parecem coisas distantes e exóticas, encontradas apenas em filmes de aventura ou fotos de revistas. A vida, afinal, acontece na cidade.
No entanto, basta despertar o interesse que descobrimos que mesmo os centros mais urbanos tem um pouco de selvageria escondida. É só saber procurar.
Foi o que fiz hoje cedo, quando acordei antes dos primeiros raios do sol aqui em Joinville, Santa Catarina.
Vim a trabalho ontem e acabei dormindo na cidade, o que sempre é uma boa oportunidade para explorar um pouco o desconhecido. Das últimas vezes que estive aqui acabei percorrendo circuitos tradicionais: a Beira Rio, a volta do Batalhão etc. Tudo tediosamente pacato, organizado e tão simples quanto uma esteira.
Hoje teria quase 2 horas para mim – tempo de sobra para sair do lugar comum.
A primeira coisa que fiz foi olhar o Google Maps: lá, no final da XV de Novembro, parecia haver um morro; havia um ponto no meio dele – possivelmente um mirante ou uma torre de TV; e o caminho certamente não era asfaltado, ao menos não no todo. Perfeito.
Ainda antes do sol nascer, em uma manhã sufocada por núvens e uma permanente ameaça de garoa, parti quebrando o silêncio com as passadas.
Levei o tempo necessário para aquecer: estava cedo e não adiantaria muito entrar na montanha com tudo escuro. Fui leve, passeando pela cidade adormecida e cruzando ruas vazias como se o tempo estivesse pausado.
Até me deparar com o morro.
De início, havia uma rua íngreme, com paralelepípedos se perdendo em meio a um matagal fechado e úmido.
Subi alternando trotes com caminhada. Faz algum tempo que caminhar deixou de ser palavrão para mim: normalmente, o ato em si significa que estou em alguma trilha, ladeira ou ambiente que precisa ser degustado sem pressa. Pace perde relevância nesse esporte.
De repente, a rua se fundiu com uma estradinha de terra. Continuei.
A estradinha cedeu lugar a uma trilha pequena, meio sinuosa e em subida constante. Segui.
Não dava para dizer que a vista estava incrível: quanto mais eu subia, mais espessa ficava a neblina. Em um ponto, a visibilidade não passava de 2 ou 3 metros.
Ao redor de mim só sons de pássaros, folhas se batendo contra o vento e cheiros do verde molhado. Estava já claro e a umidade abafada formava um clima absolutamente tropical.
A cidade já começava a despertar a apenas 20 ou 30 minutos de mim – mas parecia que eu estava no meio de uma floresta perdida no mapa.
Era um outro mundo, exatamente o tipo de escape que eu buscava para exercer a solidão.
Em um dado momento cheguei ao cume: um fim de linha sem vista ou beleza excepcional, marcado pelo que de fato era uma torre de TV.
Tudo bem: a missão do dia estava cumprida e o tênis, enlameado e quase irreconhecível, parecia feliz.
Voltei voando morro abaixo, parando apenas para tirar algumas fotos e tomando o rumo do hotel.
Entrei novamente na civilização, que agora já continha alguns carros e pessoas dando movimento ao cenário, e cruzei por ruas e avenidas.
A vida havia retornado à sua normalidade urbana. Estava de volta à realidade, exalando um intenso agradecimento tanto à mente, por ter demandado esse escape, quanto aos olhos, por ter achado o caminho.
Ter conseguido fugir do asfalto e me ver em meio a uma “súbita floresta”, mesmo que por um punhado de minutos, foi como ter um instante surrealista traçado com as pálpebras abertas.
O que mais se pode esperar das trilhas?
É mesmo isso que eu sinto aqui nos subúrbios de Lisboa e me faz ver essa cidade por outro prisma ao descobrir os “trilhos” dentro da urbe. Que belo texto.
Valeu Lourenço! Que bom q podemos contar com esses lugares escondidos em nossas cidades!