A primeira metade da medalha

Corridas longas, descobri, começam bem antes de suas largadas. 

Se puder generalizar, diria que todas podem ser divididas em duas grandes fases: o treinamento e o percurso em si. 

Qual é mais difícil? Depende. 

É difícil bater a dificuldade se se esguelar, por exemplo, ao fim de uma maratona, quando se busca um recorde pessoal qualquer. Sim: meses de treinos pesados são necessários – mas o relógio dos 42K é sempre mais sádico do que o tempo que o antecedeu. Sempre.

Em uma ultra cujo objetivo é terminar, tudo muda. Não se tem um tempo (exceto pelo corte) a bater: tudo se resume a chegar. E chegar, em casos assim, vem precedido de meses de treinamento interminável, com longões insanos e uma espécie de autoflagelação digna de qualquer pecador medieval arrependido. 

Estou exausto – mas a primeira fase do Caminhos de Rosa foi vencida. 

Não posso dizer que ela foi mais dura que a prova em si pois ainda não corri os seus 140K – mas posso dizer que será difícil bater o tanto de suor que derramei nesses últimos seis meses. 

Seja como for, estou me dando a liberdade de comemorar essa vitória desde ontem: não me recordo de ter passado por um período de treino tão pesado quanto este antes. 

A primeira metade da medalha já está no peito. 

Agora é só pegar a segunda.

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Como anda o preparo mental?

Para esta prova em especial, o Caminhos de Rosa, o preparo mental vai muito além do que se costuma imaginar em uma ultra. Nada de forçar treinos tediosos simulando horas e mais horas de nadismos pelo percurso: tudo isso é secundário. 

Há que se lembrar do motivo de ser do percurso: uma espécie de ode à inspiração que elevou um sertanejo perdido pelos ermos dos gerais a se tornar um dos – senão “o” – mais genial dos nossos escritores, Guimarães Rosa. 

Sorte dos corredores ter um preparador como estes tão ao alcance. 

Nesses últimos dois meses devorei quase mil páginas do mestre, incluindo toda a saga de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas e os primeiros dois volumes de Corpo de Baile com as histórias de Miguilim, Manuelzão, Pedro Orósio, Cara-de-Bronze e Lélio e Lina. Nesses dois últimos meses me tornei íntimo dos sertões que cruzarei em agosto com a ajuda espiritual de todos esses tantos personagens que desafiaram o caos para contornarem aquele estado de ser que nenhum de nós consegue fugir. 

Falta um mês para o Caminhos de Rosa, mais ou menos.

Falta também o terceiro e último volume de Corpo de Baile, Noites do Sertão. 

A largada para esta última etapa do treino começa hoje.

 

 

50K perfeito por São Paulo

A maior dificuldade, a meu ver, para treinos focados em ultras, é a inserção dos longões de pico na rotina.

Como nem sempre dá para encaixar provas de montanha na planilha, às vezes é necessário improvisar e gastar o tênis no asfalto da cidade. A questão é: por onde? Ficar dando voltas e mais voltas no mesmo circuito é, na melhor das hipóteses, tão eficiente quanto entediante.

Atravessar os extremos da cidade também é complicado uma vez que a distância entre alguns dos pontos praticamente puxa a preguiça.

O percurso ideal, portanto, tem que ser circular (evitando ao máximo se repetir trechos por muito tempo) e com metas praticamente equidistantes, deixando uma sensação constante de proximidade de linhas de chegada imaginárias.

No último sábado acabei forjando um percurso circular de 50K que considerei perfeito para isso – tanto que, embora tenha chegado obviamente cansado, ainda tinha gás para rodar mais.

O percurso está aí, abaixo, bastando que se clique neste link ou na imagem para acessar mais detalhes.

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Pontos importantes:

  • Saí, claro, de casa. Todo percurso de treino tem que largar de onde moramos, pois isso facilita (e muito) todo o processo.
  • O Google Maps é essencial: basta dizer onde quer ir, colocar o fone e ouvir as suas instruções enquanto se corre. Perfeito para pessoas perdidas como eu.
  • Um percurso desses tem ainda pontos em que se pode ampliar o trajeto, caso necessário. Dá para se somar mais uns 10K, por exemplo, passando a Ponte do Morumbi e esticando até o Parque Burle Marx, fazendo algumas voltas nas trilhas de lá e voltando; da mesma maneira, voltas maiores pelo Ibirapuera podem garantir mais alguns quilômetros e uma outra esticada até o Parque da Água Branca pode somar uns 5K.
  • Para o trajeto, marquei os seguintes pontos: Jardim das Perdizes – Parque Villa Lobos – USP – Parque Burle Marx via Av. Morumbi (sendo que cortei antes, na Ponte do Morumbi) – Parque Ibirapuera – Jardim das Perdizes.

Será provavelmente este o trecho que repetirei ao menos para os próximos dois longões que tenho.

 

Achando a roça no meio da cidade

Já no começo da corrida percebi um galo cantando alto, cortando toda e qualquer possibilidade de concentração no audiolivro. 

Um pouco mais adiante, galinhas se certificavam que seus pintinhos não se perdessem pelo êrmo da roça, sempre aterrorizado por gatos e seus olhares famintos. 

O cheiro de estrume de cavalo era quase onipresente, resultado dos estábulos encostados em um dos cantos da fazenda.

Fazenda? 

Quem lê essas primeiras frases imediatamente imagina que essa corrida se passou em alguma cidade do interior. Negativo.

Esse é o cenário do meu novo “lar”: o Parque da Água Branca, um parque absolutamente urbano encrustrado no meio de São Paulo. É também um dos motivos que tanto amo essa cidade: poder correr alguns metros e já se sentir em outra dimensão é, sem dúvidas, sensacionalmente incrível!

Treinamento tridimensional

É impressionante como a preparação para uma ultra é tridimensional.

Há a dimensão óbvia: o corpo. Planilhas, atenção à forma, cuidado com as pequenas dores que, vez por outra, teimam em querer crescer, volume, intensidade.

Há também a dimensão nutricional: dificilmente se consegue sequer sobreviver a um treinamento mais pesado sem saber comer. No meu caso, isso incluiu até abandonar os carboidratos e adotar, de peito, alma e estômago, uma alimentação low-carb. Funcionou. Virou um estilo de vida do qual não consigo mais me afastar.

Mas essas duas dimensões, embora importantíssimas, nem de longe garantem o mais importante: a paixão em si pelo esporte.

É aí que entra a terceira dimensão: a espiritual.

O que ela considera? A criação peculiar de um universo paralelo, isento de responsabilidades com tempo ou espaço, para que se consiga mergulhar de cabeça em um determinado percurso.

Quando primeiro pensei em fazer o Caminhos de Rosa, fui alertado por muitos de que as duas maiores dificuldades seriam o calor e o tédio, principalmente considerando que o percurso inclui maratonas inteiras corridas sem contato com cidades ou povoados. A solução? Ora… se o caminho inteiro é inspirado nas obras do Guimarães Rosa, bastava mergulhar no universo já criado pelo mestre.

Estou lendo tudo, absolutamente tudo o que ele escreveu. Tédio? O percurso já está tomando ares absolutamente inspiradores, apaixonantes, até enigmáticos. Já dá para correr imaginando o bando de Riobaldo guerreando com os hermógenes, Manuelzão tocando uma boiada, Miguilim chorando a morte do Dito.

Já dá para amar o sertão mineiro antes mesmo de pisar nele.

Tem sido um treinamento com os olhos – e um dos mais gostosos de todos os que já fiz.

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Maratona em uma segunda à noite

Mudei os planos. Ao invés de espalhar a quilometragem pela semana por conta da impossibilidade de rodar o longão no sábado, dia em que me mudo, decidi fazer isso ontem.

Assim, saí imediatamente depois do trabalho para a rua, girando pela cidade. Claro: o frio intenso e a escuridão da noite mais longa do ano certamente não ajudaram – mas tudo sempre pode ser encarado como uma aventura a mais.

Saí de casa. Desci a Sumaré. Dei a volta no Allianz Parque. Cruzei os trilhos da Estação de Trem Água Branca. Subi até o Jardim das Perdizes, onde dei outra volta. Saí, cruzei o viaduto e margeei o Memorial da América Latina. Fui até o Parque da Água Branca, onde dei duas voltas. Saí. Voltei até a Sumaré. Subi até a Brasil e, de lá, peguei a Groenlândia. Margeei o Ibirapuera por fora uma vez. Entrei. Dei duas voltas por dentro. Saí. Subi a 9 de Julho até a Paulista. Fui até a Augusta e a desci até a Tietê.

Cruzei. Cheguei.

Melhor: apesar do cansaço que sempre bate com uma maratona, devo dizer que a quantidade que tenho feito está começando a me fazer encará-las como cotidiano. Não só terminei inteiro como rodei em um pace melhor do que tenho feito meus treinos de 15 ou 20K: 5’49″/km.

Quando cheguei em casa, claro, já estava alta noite. Foi o tempo de respirar, tomar um banho e desmaiar, embora a adrenalina tivesse empurrado o sono para depois da meia noite. 

Nesse intervalo de tempo, já deitado e sentindo o tilintar dos músculos rearranjando-se nas pernas, me peguei quase maravilhado com essa quebra de rotina: “Uma maratona rodada em uma noite qualquer de segunda. Deveria fazer coisas assim mais vezes…”

Dores acumuladas ao fim do ciclo

Confesso que, quando iniciei esse modelo de treino com 3 semanas intensas e uma de descanso, não sabia que havia tanta lógica por trás da sua concepção. Imaginei que fosse um estilo de treinamento como outros quaisquer. Errei. 

No ciclo anterior, tive dificuldades em preencher as 3 semanas intensas: na do meio, acabei cedendo e deixando o volume cair um pouco para voltar a crescê-lo apenas na terceira. 

Descansei na quarta e comecei tudo de novo. Neste último ciclo fiz tudo quase à perfeição, batendo 107, 100 e 105km. Como da última vez, a mais difícil foi a segunda semana – mas ela foi superada. 

Uma descoberta curiosa: correr 15 ou 20km depois do longão do sábado passou a ser não apenas possível, como uma espécie de remédio muscular. Sim: por mais insano que pareça, os domingos pós-maratona tem sido os treinos mais rápidos, leves e analgésicos que tenho feito. 

Mas o mais curioso é o conjunto de dor que tomou conta do meu corpo ontem à noite, depois que esfriei o corpo. A ciática emanou uma dor tão lascinante que imaginei que alguém estivesse sadicamente pinçando o nervo. Depois que me recompus, caí em mim que o corpo todo doía mais do que imaginava. Nada de assimétrico ou indicativo de lesão: apenas um tipo de dor acumulada que não havia sentido há muito tempo. 

Foi quando caí em mim que todo o acúmulo veio justamente na semana de descanso. Perfeito: dará para que o corpo se recomponha bem antes que o terceiro ciclo comece. 

Enquanto isso, já estou sentindo claros os efeitos do treino: minha resistência está cada vez maior e a musculatura muito mais forte do que quando comecei. Até agora, só os pontos positivos se somam na avaliação geral que faço desse modelo. 

Até o horto por novos caminhos

Esses últimos dias foram meio virtualmente ausentes. 

Virtualmente: foi só aqui, no blog, que sumi. E há uma desculpa para isso: com todas essas mudanças recentes no país, foi como se o ano pegasse no tranco e muitos dos projetos que estavam com freio de mão puxados subitamente se acelerassem. 

Com isso, claro, mergulhei feito um louco no trabalho – mas mantendo os planos de treino. Durante a semana, acabei totalmente recuperado e encaixei tudo o que queria. 

Hoje, sábado, escolhi uma rota diferente e fui correndo daqui até o Horto, dando um loop naquele que é um dos parques mais lindos de Sampa, na beira da Serra da Cantareira, e voltando.

Caminhos novos são sempre motivadores: abrem vistas inesperadas, revelam cenas diferentes e expõem uma cidade absolutamente diferente da que estamos acostumados. O caminho até o Horto teve disso, principalmente depois que cruzei o Tietê e me vi percorrendo a Braz Leme por um canteiro central que mais parecia um bosque.

De lá, entre curvas e cotovelos, acabei entrando no parque. Amplo, verdíssimo, com ares de mata virgem e trilhinhas perfeitas. 

Pausa para inevitáveis fotos. 

Pausa para respirar a Serra da Cantareira.

Pausa para repensar a semana.

Pausa para sentir aquela energia de missão cumprida, mesmo antes de voltar para casa, já com o Caminhos de Rosa em mente.