O que funcionou e o que não funcionou no treino para correr 150K

Já começo com uma observação sobre o título: apesar da corrida ser, oficialmente, de 140K, questões da marcação acabaram fazendo com que ela se estendesse por exatos 148K. Como consegui concluir dentro do tempo limite… Bom… Considero então que o treino que fiz funcionou bem. 

Quem acompanha o blog sabe também que eu mesmo montei essa planilha sem ajuda de treinador e me baseando apenas em dicas de amigos e na sempre fundamental Internet. Pois bem: é hora então de fazer um balanço sobre todo esse período. 

Contextualização

A prova para a qual me preparei foi a Caminhos de Rosa – um percurso longo pelo sertão mineiro com direito a temperaturas que chegaram a 42 graus. A altimetria existia apenas no último trecho, quase que como um toque sádico, mas a poeira e o clima quente e seco foram suficientes para transformar essa corrida em uma das experiências mais áridas que eu tive na vida.

O relato da prova pode ser lido aqui.

Qual foi a maior dificuldade da prova?

Nos preparamos para os quilômetros, para as horas, para o clima – mas o que sempre pega em ultras assim são as coisas que sequer passam pela mente. No meu caso, a prova foi extremamente prejudicada por um par errado de meias que tinham uma saliência “errada” na parte interna e, portanto, fizeram bolhas nos dois pés já no km 30. Ou seja: corri por 110km com bolhas massacrando os pés e sem nada que pudesse fazer quanto a isso exceto aguentar. 

Não tenho nenhuma dúvida de que, não fosse por isso, teria tirado pelo menos 2 ou 3 horas do meu tempo, o que deixa um aprendizado importante: sempre, SEMPRE se deve levar um par diferente de meias para acasos assim. 

As dificuldades esperadas

Fora isso, as dificuldades foram as esperadas: distâncias longas, isolamento, calor. O calor, confesso, atrapalhou principalmente no começo, causando dores de cabeça já na quarta hora de prova. Mas foram só as bolhas aparecerem que as dores mudaram de local e a cabeça ficou perfeita. 

Essa prova especificamente tinha muito pouco ponto de apoio – havia trecho de 70km, por exemplo, sem um único PC, povoado ou pé de gente nos arredores. Para piorar, esse trecho foi à noite e em um pedaço da prova que estava consideravelmente mal sinalizado, aumentando o estresse. 

Não dá para dizer que foi fácil – mas dá para afirmar que estava preparado. 

Durante meu treino, um dos pontos que acabei me autocriticando foi a ausência de provas para ajudar nos longões. Em dias que eu fazia 50K, por exemplo, acabava só por cerca de 6 horas, sem ter com quem conversar ou me distrair. Do ponto de vista de treinamento, esse tédio realmente foi chato – mas me preparou bem. Acabei aguentando o isolamento melhor que imaginava, usando toda uma série de truques mentais (de cantar alto feito um louco a invocar os personagens de Guimarães Rosa e a pensar constantemente na minha família) para a travessia. 

Ainda sobre o treino mental

Quem olhar apenas as planilhas achará que o treino foi puramente físico. Ledo engano: houve mais preparo da cabeça do que do corpo, eu arriscaria dizer. 

A alma da prova era a literatura de Guimarães Rosa: sua linguagem, suas histórias, seus personagens, seu sertão-mundo. No instante em que me inscrevi comprei 4 livros dele e me debrucei sobre seu universo. Grande Sertão: Veredas; Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; Noites do Sertão. 

Todos livros cujas histórias fantásticas se passavam justamente pelo percurso da prova, agregando um valor e uma população àqueles sertões como nada mais. 

As quase mil e quinhentas páginas devoradas foram simplesmente perfeitas. 

O modelo da planilha

Do ponto de vista prático, minha planilha foi montada com micro-ciclos mensais. Oficialmente, comecei no final de fevereiro, logo depois que voltei do Cruce. 

A partir daí, comecei fazendo 3 semanas de alta intensidade e uma de descanso (reduzindo bruscamente o volume). Essa semana servia para recarregar as baterias, abrindo caminho para um novo ciclo alto. 

As três semanas de alto volume eram praticamente idênticas: não usei nada daquele modelo de ampliar 10% de volume por semana. Isso funcionou: depois de um mês onde aguentar volumes altos seguidos foi complicado, acabei me adaptando e adaptando o corpo a correr cansado. 

Foco no volume

Não há como se focar simultaneamente em alto volume e alta intensidade – ou vamos com um ou com outro. No meu caso, privilegiei o volume. O pace ficou quase inteiramente estacionado na casa dos 6, 6 e meio por km: leve o bastante para não prejudicar o treino mas sem ser “lerdo”. Gostei desse modelo, embora a perda de velocidade média realmente tenha incomodado um pouco. Em uma próxima, talvez faça algum ajuste pequeno para trabalhar nem que seja um pouquinho a mais na velocidade.

Altimetria compatível

Os 150K tiveram apenas cerca de 2 mil metros de desnível positivo acumulado – pouco para a distância. Como já sabia disso, acabei focando pouco em subidas ou descidas. 

Apenas em abril, quando corri os 50K da Indomit SP, é que enfrentei montanhas maiores na região da Mantiqueira. 

Depois disso, fiquei apenas no cotidiano, deixando o treino compatível com o perfil da prova. Isso também funcionou bem. 

A distribuição de treinos na semana

Quanto se deve correr em um longão quando se prepara para uma ultra longa? Menos do que se costuma imaginar.

Sim, precisamos de volume – mas Kilian Jornet, um dos mestres das longas distâncias, sempre diz que o que conta é a volumetria da semana, não do dia. 

Decidi testar isso e não fiz um único longão maior que 50K. Minha semana de pico foi mais ou menos assim: 

  • Segunda: Descanso
  • Terça: 20K
  • Quarta: 10K
  • Quinta: 15K
  • Sexta: Descanso
  • Sábado: 50K
  • Domingo: 20K
  • Total corrido: 125K

No meio da semana me mantinha aquecido com três dias sequenciais já abertos com uma meia; e o final de semana incluía um back-to-back relativamente forte, com uma pequena ultra pela cidade seguida de uma meia. 

Correr com as pernas cansadas: era esse o foco. Funcionou bem. 

O que eu faria diferente?

Sem sombra de dúvidas: o tempo de treino. Entre o final de fevereiro, quando comecei, até a largada em 19/08, foram quase seis meses de treino. Seis meses é tempo DEMAIS. 

Houve um momento, já próximo do pico, que o cansaço estava tanto que meu corpo começou a pifar: ficava com sonos súbitos no meio do dia, febres que vinham e iam em horas, bruxismo e coceiras sem motivo. Para a próxima prova longa não pretendo deixar mais que 4 meses para treinos focados (principalmente por considerar que não estava exatamente destreinado).

Resumo do que funcionou: 

  • Modelo de mini-ciclos mensais crescentes, com 3 semanas fortes de igual volume ou tempo na rua e 1 semana de descanso (com corte de algo como 40% ou 50% da carga)
  • Treinos simulando o percurso, só e isolado e com altimetria compatível
  • Treino mental/ espiritual, meio que mergulhando no universo da prova
  • Foco em volume, não em intensidade
  • Distribuição de treinos na semana, com back-to-backs fortes evitando a necessidade de longos de mais de 50K

Resumo do que não funcionou:

  • Pouca atenção a acessórios: as meias me mataram e eu tinha que ter levado um par diferente
  • Velocidade talvez devesse ter sido mais trabalhada – afinal, quanto maior o pace, menor o tempo sofrendo adversidades durante a prova
  • Tempo longo demais de treino, o que acabou gerando efeitos colaterias desnecessários e danosos

Nota geral?

Considerando tudo isso, eu daria nota 7,5 ou 8 para todo esse processo de treino. Poderia ter ido melhor? Sim, claro. Mas considerando a aridez e a dificuldade elevada da prova, a extensão maior que o esperado/ anunciado, o calor e a poeira do sertão, o isolamento e tudo mais, o fato de eu ter concluído dentro do tempo e de estar já recuperado, ansioso por um trote novo no Ibirapuera já 4 dias depois de ter cruzado a chegada, certamente é um bom sinal.

Agora é dar mais um tempinho para respirar, voltar aos poucos, deixar as bolhas voltarem a ser pés e seguir. Há mais jornadas pela frente.

Gráficos de todo o processo, do final de fevereiro até o domingo passado:

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A primeira metade da medalha

Corridas longas, descobri, começam bem antes de suas largadas. 

Se puder generalizar, diria que todas podem ser divididas em duas grandes fases: o treinamento e o percurso em si. 

Qual é mais difícil? Depende. 

É difícil bater a dificuldade se se esguelar, por exemplo, ao fim de uma maratona, quando se busca um recorde pessoal qualquer. Sim: meses de treinos pesados são necessários – mas o relógio dos 42K é sempre mais sádico do que o tempo que o antecedeu. Sempre.

Em uma ultra cujo objetivo é terminar, tudo muda. Não se tem um tempo (exceto pelo corte) a bater: tudo se resume a chegar. E chegar, em casos assim, vem precedido de meses de treinamento interminável, com longões insanos e uma espécie de autoflagelação digna de qualquer pecador medieval arrependido. 

Estou exausto – mas a primeira fase do Caminhos de Rosa foi vencida. 

Não posso dizer que ela foi mais dura que a prova em si pois ainda não corri os seus 140K – mas posso dizer que será difícil bater o tanto de suor que derramei nesses últimos seis meses. 

Seja como for, estou me dando a liberdade de comemorar essa vitória desde ontem: não me recordo de ter passado por um período de treino tão pesado quanto este antes. 

A primeira metade da medalha já está no peito. 

Agora é só pegar a segunda.

Checkpoint: Primeira ultra no treino feita

Foi uma semana complicada. Depois de duas com alto volume, depois de duas maratonas e com o bônus de eu ter me mudado de apartamento e viajado por 3 dias a trabalho na sequência, o corpo pedia descanso. 

Recebeu o oposto: na planilha, a semana passada, última do ciclo de 3 pesadas, seria fechada com 50K. 

De todos os dias, consegui levantar disposto apenas na terça, para os 20K na escuridão das primeiras horas da manhã paulistana. Depois disso, a força de vontade necessária para me erguer da cama foi tamanha que tive que inserir mudanças de planos. 

Na quarta acordei decidido a desistir. Desdesisti, como diria Guimarães Rosa, e corri à noite. 

Na quinta me senti seguro o bastante para ignorar o dia. Mudei de ideia e voltei correndo do trabalho para casa, fechando os 15K. 

Mesmo no sábado, que tende a ser um dia sagrado, foi necessária uma hora inteira para convencer o meu corpo de completar as 6 horas planejadas. 

A prova vai se aproximando na medida em que o corpo já começa a se desesperar por descanso. 

Tudo bem: esta semana, pelo menos, é mais leve. Bem mais leve. 

Ela precede um outro ciclo de alto volume – o último antes da prova – que me trará mais 3 pequenas ultras e será fechado na São Paulo City Marathon, se minha memória não me falha. 

Falta pouco.

Treinamento tridimensional

É impressionante como a preparação para uma ultra é tridimensional.

Há a dimensão óbvia: o corpo. Planilhas, atenção à forma, cuidado com as pequenas dores que, vez por outra, teimam em querer crescer, volume, intensidade.

Há também a dimensão nutricional: dificilmente se consegue sequer sobreviver a um treinamento mais pesado sem saber comer. No meu caso, isso incluiu até abandonar os carboidratos e adotar, de peito, alma e estômago, uma alimentação low-carb. Funcionou. Virou um estilo de vida do qual não consigo mais me afastar.

Mas essas duas dimensões, embora importantíssimas, nem de longe garantem o mais importante: a paixão em si pelo esporte.

É aí que entra a terceira dimensão: a espiritual.

O que ela considera? A criação peculiar de um universo paralelo, isento de responsabilidades com tempo ou espaço, para que se consiga mergulhar de cabeça em um determinado percurso.

Quando primeiro pensei em fazer o Caminhos de Rosa, fui alertado por muitos de que as duas maiores dificuldades seriam o calor e o tédio, principalmente considerando que o percurso inclui maratonas inteiras corridas sem contato com cidades ou povoados. A solução? Ora… se o caminho inteiro é inspirado nas obras do Guimarães Rosa, bastava mergulhar no universo já criado pelo mestre.

Estou lendo tudo, absolutamente tudo o que ele escreveu. Tédio? O percurso já está tomando ares absolutamente inspiradores, apaixonantes, até enigmáticos. Já dá para correr imaginando o bando de Riobaldo guerreando com os hermógenes, Manuelzão tocando uma boiada, Miguilim chorando a morte do Dito.

Já dá para amar o sertão mineiro antes mesmo de pisar nele.

Tem sido um treinamento com os olhos – e um dos mais gostosos de todos os que já fiz.

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Dores acumuladas ao fim do ciclo

Confesso que, quando iniciei esse modelo de treino com 3 semanas intensas e uma de descanso, não sabia que havia tanta lógica por trás da sua concepção. Imaginei que fosse um estilo de treinamento como outros quaisquer. Errei. 

No ciclo anterior, tive dificuldades em preencher as 3 semanas intensas: na do meio, acabei cedendo e deixando o volume cair um pouco para voltar a crescê-lo apenas na terceira. 

Descansei na quarta e comecei tudo de novo. Neste último ciclo fiz tudo quase à perfeição, batendo 107, 100 e 105km. Como da última vez, a mais difícil foi a segunda semana – mas ela foi superada. 

Uma descoberta curiosa: correr 15 ou 20km depois do longão do sábado passou a ser não apenas possível, como uma espécie de remédio muscular. Sim: por mais insano que pareça, os domingos pós-maratona tem sido os treinos mais rápidos, leves e analgésicos que tenho feito. 

Mas o mais curioso é o conjunto de dor que tomou conta do meu corpo ontem à noite, depois que esfriei o corpo. A ciática emanou uma dor tão lascinante que imaginei que alguém estivesse sadicamente pinçando o nervo. Depois que me recompus, caí em mim que o corpo todo doía mais do que imaginava. Nada de assimétrico ou indicativo de lesão: apenas um tipo de dor acumulada que não havia sentido há muito tempo. 

Foi quando caí em mim que todo o acúmulo veio justamente na semana de descanso. Perfeito: dará para que o corpo se recomponha bem antes que o terceiro ciclo comece. 

Enquanto isso, já estou sentindo claros os efeitos do treino: minha resistência está cada vez maior e a musculatura muito mais forte do que quando comecei. Até agora, só os pontos positivos se somam na avaliação geral que faço desse modelo. 

Checkpoint: Inteiro, mas meio assustado

92,4K, exatamente dentro do planejado. Claro: ter que diminuir o ritmo na semana passada não exatamente o plano, mas pelo menos me recuperei nesta.

Até agora, estou como que em fase de adaptação a esse modelo de treino de 3 semanas pesadas e uma leve, ampliando a volumetria apenas em blocos mensais. Fato: a resistência está mesmo maior: fazia tempo que não somava semanas acima dos 90K, incluindo longões em pares de 40K aos sábados e 20K aos domingos.

Por outro lado, o corpo fecha o domingo esmigalhado de dor, perto de um limite que não quero cruzar. Essa é a parte do “assustado” que se encaixou no título do post: a sensação de estar exigindo muito do corpo é constante.

São, no entanto, 140K sob o sol sertanejo que me aguardam: lembrar disso de vez em quando é sempre importante. Metas servem para encurtar a sensação de distância dos caminhos.

Bom… semana que vem é mais leve e devo ter algo na casa dos 60 ou 70K para rodar – ainda não conferi. Diferentemente da semana anterior de descanso, não pretendo “aproveitar” para encaixar tempos ou tiros: pretendo realmente fazer uma semana inteira de regenerativos. 

Vamos ver como funciona.

(De acordo com o Suunto, tenho 126 horas de “recovery time” pela frente).

Checkpoint: Quebrado

Pequeno revés no plano: aparentemente, a carga da semana passada foi alta demais para a sua “repentinidade”. 

A semana até começou razoavelmente bem mas, quando pulei para os 20K na quarta com aumento na intensidade, as rodas simplesmente saíram.

Quinta e sexta foram dias de descanso difíceis; o sábado me estourou por completo. 

Bom… antes que seja tarde, desisti do dia de hoje. Semana que vem tentarei uma carga mais alta – mas sem exageros e dando mais tempo à evolução.

Às vezes, o mais difícil de um processo de treinamento é entender que se trata de um processo – e que, como tal, leva tempo. 

Cedamos, pois, ao tempo.

O outro lado do treinamento

Dizem que uma ultra se corre mais com a alma do que com o corpo.

Concordo, embora o corpo seja essencial para uma travessia com tantos quilômetros, vilas e cenários no caminho. Ainda assim, por melhor preparado que se esteja fisicamente, o nos permite engolir quilômetros decididamente não são as pernas.

Estas já estão em pleno treinamento para o Caminhos de Rosa com planilhas montadas, metas estabelecidas e controles rígidos pelo caminho. 

Agora, no entanto, é hora de preparar o coração e a mente.

É hora de mergulhar no sertão de Guimarães Rosa. 

É hora de deixá-lo entrar pelos olhos e fixar-se na alma, de onde sairá a meu socorro – assim espero – quando tudo mais falhar entre o Morro da Garça e Cordisburgo.

Hoje começa o treinamento dos olhos, do coração, da mente, da alma.

E não há planilha melhor para isso, claro, do que esse guia mestre.