Sábado na USP

Quem não é de São Paulo provavelmente terá dificuldades em entender o que significa a USP para corredores. 

Sempre fui apaixonado por esta cidade mas, verdade seja dita, encontrar uma natureza pardisíaca para se correr aqui não é tarefa fácil. Sim: há o Pico do Jaraguá e o Cantereira – mas eles são distantes, fora de mão quando se busca um treino mais fácil. 

Há o Ibirapuera, sem dúvidas – mas este acaba sendo cotidiano demais quando se pega o hábito de corrê-lo em 3 dias úteis por semana. Há a cidade em si? Claro: cruzar o centro velho é sempre um prazer para mim – mas às vezes queremos aquele tipo de paz que apenas passos cruzando o verde proporciona. 

É aí que entra a USP. 

Aos sábados, ela costuma ficar tomada de corredores e ciclistas como se fosse uma prova de rua, com todos querendo aproveitar o seu espaço verde, bem cuidado e quase vazio de vida urbana. Seu entorno abre diversos percursos: três grandes e um com uma pequena trilha fechada que nos dá a sensação de ter entrado no meio de uma floresta virgem. 

Em dias chuvosos, então, tudo fica ainda melhor. Além de respirar esporte como em todo sábado, o movimento fica suavemente mais leve e se consegue cruzar seus bosques e ladeiras sentindo na pele a umidade fria da capital paulista, clima responsável, em última instância, para que a cidade tivesse sido fundada aqui. 

Tinha uma maratona para rodar no sábado passado e fui para lá. Além do caminho de e para casa, foram necessárias 3 voltas. Alternei o percurso nelas e, por todo o tempo, corri com o fone desligado apenas escutando a mata. Ali, no meio da cidade, dava para ouvir apenas sons de pássaros, plantas chacoalhando ao vento e eventuais passadas de corredores. 

Dava para sentir o cheiro da umidade, para sentir o clima provocar uma mescla de suor com frio arrepiando os braços.

Dava para estufar o pulmão e deixar nas ruas todo o estresse que cisma em grudar em nossos peitos em tempos difíceis. 

Dava para correr com uma leveza bem próxima à perfeição.

Não vou à USP com tanta frequência assim: na maior parte das vezes acabo cavando percursos inéditos ou cantos mais isolados da cidadade. Tudo depende sempre do estado de espírito no sábado pela manhã. 

É sempre bom, no entanto, saber que ela estará lá, à espera, sempre que precisar. E que imagens como essas abaixo, que instagramei no meio do treino, estarão sempre ao alcance.

 

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Pelas trilhas molhadas do Ibirapuera

A ideia nem era sair pra correr hoje, 2 de janeiro, primeiro dia em São Paulo depois dos inenarráveis visuais cariocas que presenciei.

A ideia era descansar pelo menos um dia, dando tempo para o corpo se recuperar melhor das trilhas e montanhas, das subidas, do calor de mais de 40 graus.

Mas como resistir? São Paulo amanheceu bem paulistana: nublada, com temperatura amena e uma finíssima garoa deixando o cenário mais úmido. Foi o suficiente: precisava inaugurar o ano na minha cidade.

Cansado ou não, troquei de roupa, calcei os tênis e saí para o Ibirapuera. Claro: não havia lugar melhor para começar o ano do que lá, que considero uma extensão de casa.

Cruzei as ruas absolutamente desertas de uma cidade que ainda não voltou de férias, entrei pelo portão da República do Líbano e virei à direita. Fui, claro, pela trilha enlameada, encharcada, deliciosa.

Aliás, ela estava tão molhada e carregada de poças que parecia ter havido um dilúvia nos dias em que eu estava fora. Nada melhor: um pouco de lama colore o tênis e a umidade fortalece o aroma das árvores e folhas do caminho. 

Cheiros, aliás, estavam mais que marcantes na trilha. Terra molhada, flores, plantas cultivadas na zona das estufas e mesmo a grama pareciam insandecidas na tarefa de perfumar os primeiros ares do ano.

“Que seja uma metáfora para os próximos 12 meses”, torci.

Voltei com esse pensamento em mente. Terminei o loop com o tênis deliciosamente imundo, cruzei a Groenlândia esquisitamente deserta, subi o trecho rápido da 9 de Julho, virei na Brasil, subi toda a Ministro até a Paulista.

Revi a avenida símbolo da metrópole, passei pelo pequeno e bem cuidado Parque Mário Covas, desci a Bela Cintra voando em ritmo queniano.

Estava de volta. 

16km de volta a casa, de loop em trilha enlameada, de inauguração de ano.

E ainda tem amanhã.

  

Correndo a Indomit 100K

Doeu – mas isso é meio óbvio.

Falemos, portanto, do que não é.

Largando à meia noite e mergulhando na lama


Isso, por si só, não é tão incomum em ultra mais longas. Mas a grande questão da Indomit é que ela é conhecida pela dificuldade técnica de suas trilhas – algo que só piorou com o as chuvas bíblicas que caem sobre todo o estado de Santa Catarina há mais de um mês.

Para ser justo com São Pedro, ele até deu uma trégua: a noite estava linda e clara e o amanhecer na Costa Esmeralda foi realmente sensacional. Mas… claro… toda a água que caiu permaneceu no chão, encharcando as trilhas.

Muitas trilhas. A primeira série delas, de mais ou menos uns 7km, me tomou mais de 2 horas. Não dá nem para dizer que eram single tracks: estava mais para “single muds”. Lama e água desciam feito cachoeira de todo canto, transformando subida e descida em um desafio por si só. Já nos primeiros metros tomei minha primeira queda, ouvindo um estalo desconfortável do pulso esquerdo.

Depois, em muitas outras, o corpo fez questão de se apoiar na mesma mão, deixando-a dolorida até o final da prova.

Curiosamente, a iluminação em si não foi o problema. Aliás, arrisco-me dizer até que o escuro ajudou: com a visibilidade restrita ao chão imediatamente abaixo dos pés, a mente não via o qiue estava por vir e encarava tudo com mais “esperança”. Ainda bem: daí até o final da primeira série de trilhas, mais difícil de todo o percurso, seria tudo ultra sinistro.

O alívio

Depois dessa série, um alívio: os próximos 30km, aproximadamente, seriam de estrada de terra com um pouco de asfalto. Seguimos, respirando melhor e curtindo mais cada passo noturno. Tudo, claro, estava no mais puro breu: mas passar pela noite foi uma das descobertas positivas para mim: a adrenalina realmente consegue aniquilar o sono.



 E, claro, fechar a distância da maratona beirando o amanhecer foi também um bom sinal: se mantivesse o mesmo ritmo, conseguiria completar a prova lá pelas 15:00.

Ledo engano.

Trilhas infinitas

A partir daí, todo o percurso passou a ser uma mescla de trilhas técnicas com trechos em praia e em estradas de terra. Nenhuma outra trilha foi igual à primeira série – ainda bem. Mas a quantidade e a duração delas foi, aos poucos, massacrando a mente.

Lá pelos 60K estava no meu momento mais baixo. Lembro de ter cruzado com o Rodrigo João, que estava fazendo a prova de 50K, e que me perguntou se eu estava bem. Imaginei que deveria estar parecendo um cadáver.

Para isso servem os postos de controle – todos, diga-se de passagem, perfeitamente organizados. Sentei, liguei para casa, tomei uma Coca, respirei… e saí.

Aos poucos fui recuperando o ânimo e, antes que me desse conta, estava correndo solto pelas areias das praias. O visual deslumbrante, contrastando o verde da mata com o azul do céu e do mar, ajudaram bastante. Claro.


  
    

A Macaca

Uma das metas era chegar no Posto de Controle do Atlântico, no km 77, último grande PC do percurso. Sentei, tomei mais uma Coca e segui. Mais à frente, uma trilha nova esperava: a Macaca.

Essa, no entanto, foi mais ao meu estilo: teve muita subida e descida, mas tudo seco e recompensado com um visual inacreditável no topo. Pausa para foto e para respirar. Àquela altura, minha previsão de tempo já havia evaporado e estava simplesmente dando um passo depois do outro.

 
Mas, claro, como era hábito da Indomit, havia uma surpresa mais para a frente: o fim da trilha da Macaca emendava com outra trilha, bem mais enlameada e sinistra. Segui.

Escorregando, mas segui.

Ao final, praia.

Corri.

Estava exausto, mas segui adiante como única alternativa.

Nas trilhas, os quilômetros parecem se recusar a passar: anda-se por horas e, quando se confere o GPS, parece que se está no mesmo lugar.

Mais para a frente, um outro posto de controle pequeno me permitiu recobrar o ar. Estava em uma nova zona baixa, com fome e exausto. Tomei uma sopa salvadora que eles serviam, engoli uma Coca e segui adiante.

O último trecho

Dali para a frente, os apoios falaram que seria apenas praia e estrada de terra.

Mentiram. Por surpresa, uma nova trilha entre Bombas e Porto Belo, com cerca de 2km, estenderia a sua lama sob nós. Foi uma espécie de golpe quase fatal: ela trouxe um mau humor que só foi aliviada pelo papo com os outros corredores, todos igualmente exaustos de trilhas.

Mas, eventualmente, tudo chega ao fim.

A trilha terminou em uma estrada de terra que, por sua vez, emendou no asfalto. Parei no último PC, faltando 5km, e sentei.

Lá, no entanto, o corpo começou a dar sinais de esgotamento: senti frio, comecei a tremer e a ficar muito, muito fraco. Se permanecesse sentado por mais alguns minutos, eu sabia que não conseguiria retornar à prova – e não havia passado por tanto para desistir nos últimos 5km.

De repente, me levantei, olhei para frente e comecei a correr.

Alcancei um grupo de corredores – incluindo o Nélio, leitor do blog que me reconheceu sabe-se lá como – com quem fui até o final. Batendo papo com eles, todo o mal estar sumiu: de alguma forma eu havia me recuperado plenamente. Estava conversando normalmente, sem frio e até com menos dores.

E, tirando uma ou outra subida, fomos trotando até o final, engolindo o que faltava de asfalto e praia até ver o pórtico e cruzá-lo como se fôssemos os maiores heróis do dia.

Talvez para nós, aliás, tenhamos mesmo sido. No total, fechei os 100K em 21:07:26, meu recorde de tempo em uma prova.

Cheguei exausto, faminto e com dores generalizadas, destacando coxas e pés – mas muito mais forte do que imaginava. Provavelmente precisarei de uns dias a mais para entender esse longo, longo dia que se passou – mas tê-lo vencido foi, para mim, verdadeiramente marcante.

Pros e contras?

Antes de mais nada, vale reforçar que a organização foi realmente incrível. Mesmo com uma mudança de percurso no mesmo dia da largada por conta de condições técnicas (e, dado que eles mantiveram a primeira série de trilhas, nem dá para imaginar como estava o trecho que substituíram), tudo estava perfeitamente marcado.

Havia postos de apoio mais que o suficiente, o abastecimento estava redondíssimo e a segurança estava reforçada (apesar dos trechos de trilha inegavelmente perigosos).

Mas, ao menos na minha opinião, a dificuldade foi exagerada. Talvez pelas condições em si de cada trilha, ter tantas assim dos primeiros aos últimos quilômetros foi um pouco demais, algo estampado nas faces tanto dos corredores que chegaram até o final quanto dos tantos que desistiram pelo caminho.

Ainda assim, recomendo esta prova para quem quiser – desde que tenha claro que estará enfrentando uma dificuldade realmente colossal.

O que faz valer a pena

Mesmo com tanto calor e umidade, com percursos improvisados por estradas sem acostamento, com despertares horas antes do sol pensar em nascer… mesmo com tudo isso, correr em lugares diferentes vale pelas cenas novas, maravilhosamente estranhas, que as pálpebras colecionam.

Há coisas que dificilmente sairão da mente – como esse caminho que fiz nos 20K de hoje de manhã. Ainda bem.

   
  

Queimado pelo calor do sul dos Estados Unidos

35-40 graus com umidade acima dos 90% intercalados com períodos em locais com ar condicionado digno da Sibéria: não há corpo que aguente.

Ou até pode haver – mas não é o meu. Já fui dormir ontem sem voz, com dor de cabeça e um teco de febre. Acordei às 5 para correr… mas desisti. Há dias em que o melhor a fazer é ceder ao corpo, dando tempo para que ele se recupere. 

Passei o dia com idas e vindas do mal estar… mas melhorando. A cada olhada no céu azul, um arrependimento de não ter aproveitado o asfalto logo cedo; a cada tosse ou incômodo na garganta, um alívio pelo mesmo motivo.

Asfalto, de amanhã você não me escapa.

  

33 graus, 92% de umidade relativa

O problema definitivamente não foi o sol. Tanto hoje quanto anteontem saí com o dia ainda escuro, às 5:15 da manhã aqui na região central da Florida. 

O problema foi o calor perfeitamente temperado pela umidade. 

Saí por uma rota improvisada pela estrada, buscando me fazer visível na contramão dos carros com uma camisa mais brilhante que a luz do dia. Funcionou. 

Se alguém visse a cena a distância – incluindo um céu azul escuro com uma lua imensa reinando absoluta – imaginaria um clima ameno, gostoso. Não era o caso: mesmo no final da madrugada o calor castigava como em poucos outros lugares em que já estive. 

Quando o dia em si nasceu, lá pelas 6:30, sem uma única nuvem, tudo piorou. 

Cada passo vinha acompanhado de jorros próprios de suor.

Por algum motivo, tanto a braçadeira com o IPhone quanto a garrafinha d’água que carregava pareciam mais pesados, quase insuportáveis. 

Nos momentos em que tinha que correr sobre a grama, a umidade nas solas dos pés davam aquela sensação de talho dolorido, rivalizando com o ardor dos olhos por conta das gotas de suor que insistiam em entrar pelas pálpebras para queimar as pupilas. 

A estrada vazia à frente, rodeada de pântanos, mostrava as ondas de calor que o corpo, absolutamente pegajoso, denunciava. 

Tudo estava grudento, molhado, pesado. 

Entrei por caminhos diferentes para variar a paisagem: a sensação de estar no passado confederado americano trazia algum conforto – sempre curti a percepção de correr pela história. Casas e hotéis com a arquitetura sulista se erguiam em frente a lagos com ares de pântano enquanto a trilha sonora, quase que inteiramente feita de sapos e pássaros, completava a paisagem. 

Mas era o calor quem falava mais alto. Muito mais alto.

Na prática, estava fazendo 33 graus com umidade de 92%. Não faço ideia de como calcular a sensação térmica disso, mas certamente não é coisa bonita. 

Ainda assim, depois de 20km nesse cenário novo que mesclava Saara a Amazônia, as reclamações do corpo cederam espaço a uma espécie de alegria esquisita: estava, afinal, experimentando uma espécie de novidade na corrida, cruzando lugares novos e em condições absolutamente diferentes do que esotu habituado. 

Incomodou? Sem dúvidas. 

Doeu? Sim. 

Mas mal posso esperar para repetir tudo amanhã. 

  

 

Características de uma ultra perfeita

Depois dos pantanosos 50K do sábado, comecei a me perguntar quais seriam, de fato, as condições ideais de ultra para mim. Todos tem a sua preferência, afinal – há desde os que curtem trecos como a mega úmida e tensa Jungle Marathon às secas e empoeiradas travessias em deserto.

E eu?

Bom… Descobri que tenho alguns parâmetros do que faz uma ultra ideal para mim. Vamos a algumas de suas características:

Percurso

O campeonato mundial de ultras de 2014 foi em Doha, perfazendo 100km em voltas de 5K. Honestamente, eu enlouqueceria.

O percurso ideal para mim é ponto-a-ponto ou circular, permitindo que se consiga desbravar cenas novas a cada passada. Ver é quase tão importante quanto correr e passar 3 ou 4 ou mais vezes dando voltas entedia. Bastante.

Altimetria

Há dois lados para essa moeda. Quanto mais intensa a altimetria, mais belas tendem a ser as vistas; quanto mais plana, mais rápido o percurso.

Curto as duas alternativas e julgo um meio termo como ideal. E, por meio termo, entenda-se qualquer coisa que varie de 2 a 4 mil metros, com alguma margem, em uma ultra de 80K.

Dá para correr e aproveitar cenas incríveis ao mesmo tempo.

Terreno

Asfalto, aqui, não entra na preferência – mas o estilo de pura aventura, sem demarcações e com surpresas como rios a serem atravessados e barrancos a serem escorregados, também não. Aliás, em uma comparação direta entre esses extremos, o asfalto ganha de longe.

Percursos pantanosos, mega úmidos e cheios de imprevistos são coisas que procurarei evitar ao máximo. Terrenos assim nos fazem passar boa parte da prova olhando para o chão para evitar quedas desnecessárias – algo bem distante do meu estilo.

O ideal? Uma mescla qualquer entre estradas de terra e single tracks que até podem ter alguma dificuldade, claro, mas que não sejam assim tão “infernais”.

Tendo dito isso, cabe uma observação: provas como a Comrades são um ponto totalmente fora da curva. Sim, ela é em asfalto por 90km – mas com tanta gente correndo e torcendo e com tanta história que faz todo o tempo parecer um sonho.

Distância

Para mim, distância não é exatamente um problema. Descobri que tenho uma tolerância relativamente alta por passar loooongos tempos na estrada – o que costuma vir com quilômetros e mais quilômetros de percurso.

Não sou muito rápido – principalmente porque curto tanto estar em uma ultra que paro de tempos em tempos para tirar fotos e aproveitar a experiência. Além disso, convenhamos: para que se matar na velocidade quando se sabe que um podium é impossível e em um esporte com tantas variáveis por prova que mesmo medir recordes pessoais fica complicado?

Mas ainda me falta mais experiência em distâncias maiores: o máximo que fiz, até hoje, foram 90km. Ainda preciso experimentar alguma prova de 100km e de 100 milhas. Não minto que 100 milhas me assustam um pouco – mas um dia chego lá.

Tecnicalidade

Desde que não seja nada que coloque a minha vida em risco, qualquer coisa é bem vinda.

Claro: ter algum percurso que permita a corrida (e não só trekking) ajuda: afinal, é ela que mais facilita o fluxo livre da endorfina. Além disso, não sou um trilheiro muito safo: a insegurança às vezes bate com maior força que deveria antes de algum movimento mais complicado.

Mas, isto posto, não posso dizer que tenha nenhuma restrição mortal quanto a escaladas ou descidas minimamente complexas.

Ao menos desde que o percurso como um todo seja feito para ser aproveitado, não temido.

Temperatura

Nunca corri em extremos – seja um calor de 50 graus do Saara ou um frio ridículo ao estilo Antártico.

Mas não teria nada contra. Para falar a verdade, a temperatura acaba sendo justamente a cereja do bolo de algumas provas. Ou alguém vê alguma graça em uma Badwater sob amenos 20 graus?

Umidade

Seca. Esse é o segundo dos dois únicos pontos que sou um pouco radical – e pelo mesmo motivo. Não gosto de umidade em excesso justamente porque ela costuma acompanhar percursos quase impossíveis com muita lama e oportunidades abundantes para se escorregar e se esborrachar no chão.

Sou ruim de equilíbrio, possivelmente em todos os sentidos, e não gosto tanto de colocar isso à prova o tempo todo.

Apoios

Não tenho nenhuma preferência aqui – desde que as regras sejam cumpridas. Ou seja: se uma ultra for autosuficiente, então esperar postos de apoio com água e comida é uma imbecilidade. A autosuficiência, nesses casos, é parte da prova, um desafio a mais.

Mas, se houver postos espalhados, o ideal é que pelo menos alguns tenham refrigerante ou infra para um bem vindo descanso de 5 minutos no meio da prova.

O “fator exótico”

Correr em um lugar diferente, inusitado, sempre soma pontos extras para qualquer ultra. A vida, ao menos em meu entendimento, é feita para aproveitarmos ao extremo cada segundo de consciência que temos. E aproveitar ao extremo significa sair do cotidiano e se entregar ao exótico.

Assim, correr nas montanhas da Patagônia, entre as vinhas do Douro, no deserto, em Comrades, na Mata Atlântica, na praia ou em qualquer outro cenário “diferente” sempre valerá a pena – mesmo quando todos os outros fatores estiverem jogando contra.

O resumo

Ultras são ultras: são feitas para testarmos nossos limites físicos e (principalmente) mentais.

Mas são feitas também para honrarmos a nossa própria vida, entregando ao coração experiências que ele jamais esquecerá.

Não me considero muito exigente aqui: tendo 50 ou mais quilômetros – o suficiente para garantir um bom tempo correndo – quase qualquer coisa vale.

Quase: o limite, para mim, é a linha que separa o aproveitamento de uma experiência memorável do estresse de passar horas olhando para o chão para não cair de cara (ou em um precipício).

Fora isso, é tudo uma questão de se entregar a uma experiência nova, de mergulhar em si mesmo e de se permitir entrar em uma zona mental tão intensa que o final sempre trará uma noção mais cristalina de quem realmente somos.

Cabot Trail tourism destinations

Uma trilha súbita

Dizem que, quando começamos a nos interessar por algo, os olhos ganham uma espécie de agudeza quase sobrenatural para localizar o que a mente mais deseja.

Faz sentido: os olhos, afinal, são grudados à imaginação e tem por objetivo nos guiar pelas manifestações físicas do que ela concebe em seu estado quase onírico de liberdade constante.

Correr em trilhas é um exemplo perfeito disso.

Quando sequer se sabe da existência desse esporte, trilhas parecem coisas distantes e exóticas, encontradas apenas em filmes de aventura ou fotos de revistas. A vida, afinal, acontece na cidade.

No entanto, basta despertar o interesse que descobrimos que mesmo os centros mais urbanos tem um pouco de selvageria escondida. É só saber procurar.

Foi o que fiz hoje cedo, quando acordei antes dos primeiros raios do sol aqui em Joinville, Santa Catarina.

Vim a trabalho ontem e acabei dormindo na cidade, o que sempre é uma boa oportunidade para explorar um pouco o desconhecido. Das últimas vezes que estive aqui acabei percorrendo circuitos tradicionais: a Beira Rio, a volta do Batalhão etc. Tudo tediosamente pacato, organizado e tão simples quanto uma esteira.

Hoje teria quase 2 horas para mim – tempo de sobra para sair do lugar comum.

A primeira coisa que fiz foi olhar o Google Maps: lá, no final da XV de Novembro, parecia haver um morro; havia um ponto no meio dele – possivelmente um mirante ou uma torre de TV; e o caminho certamente não era asfaltado, ao menos não no todo. Perfeito.

Ainda antes do sol nascer, em uma manhã sufocada por núvens e uma permanente ameaça de garoa, parti quebrando o silêncio com as passadas.

Levei o tempo necessário para aquecer: estava cedo e não adiantaria muito entrar na montanha com tudo escuro. Fui leve, passeando pela cidade adormecida e cruzando ruas vazias como se o tempo estivesse pausado.

Até me deparar com o morro.

De início, havia uma rua íngreme, com paralelepípedos se perdendo em meio a um matagal fechado e úmido.

Subi alternando trotes com caminhada. Faz algum tempo que caminhar deixou de ser palavrão para mim: normalmente, o ato em si significa que estou em alguma trilha, ladeira ou ambiente que precisa ser degustado sem pressa. Pace perde relevância nesse esporte.

De repente, a rua se fundiu com uma estradinha de terra. Continuei.

A estradinha cedeu lugar a uma trilha pequena, meio sinuosa e em subida constante. Segui.

Não dava para dizer que a vista estava incrível: quanto mais eu subia, mais espessa ficava a neblina. Em um ponto, a visibilidade não passava de 2 ou 3 metros.

Ao redor de mim só sons de pássaros, folhas se batendo contra o vento e cheiros do verde molhado. Estava já claro e a umidade abafada formava um clima absolutamente tropical.

A cidade já começava a despertar a apenas 20 ou 30 minutos de mim – mas parecia que eu estava no meio de uma floresta perdida no mapa.

Era um outro mundo, exatamente o tipo de escape que eu buscava para exercer a solidão.

Em um dado momento cheguei ao cume: um fim de linha sem vista ou beleza excepcional, marcado pelo que de fato era uma torre de TV.

Tudo bem: a missão do dia estava cumprida e o tênis, enlameado e quase irreconhecível, parecia feliz.

Voltei voando morro abaixo, parando apenas para tirar algumas fotos e tomando o rumo do hotel.

Entrei novamente na civilização, que agora já continha alguns carros e pessoas dando movimento ao cenário, e cruzei por ruas e avenidas.

A vida havia retornado à sua normalidade urbana. Estava de volta à realidade, exalando um intenso agradecimento tanto à mente, por ter demandado esse escape, quanto aos olhos, por ter achado o caminho.

Ter conseguido fugir do asfalto e me ver em meio a uma “súbita floresta”, mesmo que por um punhado de minutos, foi como ter um instante surrealista traçado com as pálpebras abertas.

O que mais se pode esperar das trilhas?

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Correndo dentro do silêncio

Um amigo uma vez me disse que a melhor maneira de representar o silêncio no teatro era inserindo pequenos barulhos em cena: cantos de grilos, sopros do vento, passos cortando o vazio. Curiosamente, são os pequenos sons – e não a ausência deles – que definem o silêncio a partir do contraste.

Silêncio.

Quando se está buscando algum tipo de recuperação, quando se quer sair de um estado de estafa física e mental, poucos remédios são mais perfeitos que ele. O problema é que costuma ser algo difícil de se conseguir: quando não há tarefas do dia gritando em alto tom a sua existência, há preocupações do dia seguinte ecoando entre as orelhas.

Nesse constante zunido, qualquer tipo de calma, de paz de espírito, se faz quase impossível.

Quase.

Na segunda-feira saí para uma corrida diferente. Era fim de tarde, ainda claro devido ao horário de verão, e com o tempo carregado da eletricidade que costuma preceder a chuva.

Saí sem telefone, sem música, sem podcast ou audiobook. Fui absolutamente só, ignorando a leve garoa que já começava a cair.

Estados Unidos, Brigadeiro, Ibirapuera. Os carros viraram vultos semi-silenciosos navegando, nervosos, pelas ruas úmidas. Tudo ficou distante, meio apagado – exceto pelo ritmo das passadas amassando poças e folhas e pela pulsação carregando o sangue corpo afora.

Passos ritmados. Pulso. Buzinas distantes. Folhas. Brisas súbitas soprando contra os ouvidos. Pássaros cantando. Suor pingando.

Noite caindo.

Para o mundo, a cena provavelmente carregava toda uma orquestra de sons desconexos, desafinados, fora de foco.

Para mim, era o mais perfeito silêncio.

Pela primeira vez em muito tempo senti a bênção desse silêncio curando os sintomas do overtraining a cada passo. Aos poucos, mas de maneira persistente.

Forte, mas não súbito; constante, mas não irritante.

Em um dado momento, foi como seu eu não estivesse correndo no parque e sim dentro de mim mesmo. De um sonho afônico.

De repente, uma solidão sem tamanho pulou sobre o meu ombro, forçando uma autopiedade que beirou a tortura. Durou alguns minutos e, em uma espécie de efeito catártico, quase me fez chorar. Quase.

Foi o tempo de respirar fundo e, no instante em que o cansaço mental foi exalado juntamente com algumas gotas de suor e chuva, a endorfina entrou pelo pulmão e se espalhou. Livre, inteira, intensa.

O ar que faltava nos dias anteriores veio. O mau humor se foi. O cansaço foi transferido da alma para as pernas que, de repente, sentiram os quilômetros que estavam percorrendo. Tudo foi substituído por uma sensação de pura paz.

A essa altura, estava encharcado de chuva e suor. Estava fisicamente pela metade – mas mentalmente inteiro.

Pela primeira vez em dias, estava bem.

Os problemas não sumiram, as preocupações não evaporaram, o mar de coisas para fazer se manteve intacto.

Mas, de alguma forma, o silêncio me deu de presente a sensação de que tudo dará certo.

Já não era sem tempo.

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