Correr é uma forma de escape.
Não escape no sentido de fuga, de esquecimento temporário da realidade que se impõe sobre nós com todos os seus problemas e asperezas. Escape no sentido oposto: o de mergulho tão intenso nesta mesma realidade que ela se torna mais palpável, nítida, mensurável.
A cada passada, a cada intervalo, uma conclusão sobre algo se desenha. Nos entendemos melhor, nos enxergamos, nos perdoamos, nos perdemos. Em nós mesmos, por mais reto e repetido que seja o percurso.
Correndo, os problemas não são esquecidos ou varridos para debaixo de um tapete. Eles são resolvidos como equações matemáticas, um a um, mesmo quando nos esforçamos arduamente para não enxergar nada além das próprias passadas.
Irônico: é justamente nesse escape do cotidiano que conseguimos resolver melhor os problemas que mais o assolam.
Pensando bem, há, sim, uma fuga: a do cansativo esforço consciente para achar as soluções que o inconsciente parece conhecer incrivelmente bem. Nessa fuga, a barreira que os separa, que se prostra entre o que sabemos e o que acreditamos ainda não saber, se atenua, se acinzenta, fica porosa ao ponto de permitir um tipo de intercâmbio semi-onírico de conclusões. Decisões simplesmente parecem brotar, óbvias, inteiras.
No intervalo entre uma música e outra no iPhone, ao cruzar o portão do Ibirapuera, ao diminuir o ritmo para que um ciclista desatento passe sem perigo. A vida inteira parece se autoresolver no instante entre passadas. Entre pingos de suor.
Às vezes tudo o que precisamos é justamente deste escape para achar soluções sem esforço – mesmo porque esforço demais destroça qualquer tentativa de sanidade mental.
Essas semanas estão recheadas de problemas.
Ainda bem que está na hora de correr.