Pelas paisagens urbanas

Confesso que amo, insanamente, correr pela paisagem urbana de São Paulo.

Faz pouco sentido, sei, para quem curte tanto a paisagem de trilhas, montanhas e natureza de forma geral.

Mas o que é uma grande cidade senão um pedaço exoticamente legítimo da natureza, adaptado pelas mãos de seus protagonistas na cadeia alimentar? E o que é uma paisagem urbana senão o testemunho simultâneo à grandiosidade e à decadência de tantos ideais das mais diversas correntes de pensamento?

No meu cotidiano eu tomo retas por ciclovias, subo escadarias esquisitas, atravesso trilhas de trens e perambulo por zonas tomadas por aquele clima de devastação típico de centros latinoamericanos. Tudo com o contraste de um audiolivro cantando Wilde, Achebe ou Tólstoi ouvidos adentro, transformando toda a experiência de correr em algo ainda mais singular.

No meu cotidiano, vejo coisas assim enquanto corro:


É algo tão fenomenal quanto cruzar cadeias montanhosas nos alpes europeus? Provavelmente não. Mas não moro nos alpes.

E, se tem uma coisa que aprendi, é que sempre faz bem aproveitarmos o que nos é posto à frente pela própria vida.

Sábado tem um outro ultra-longão: mal posso esperar o que essa sempre mutante cidade de São Paulo reservará pelo caminho.

 

 

 

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Vídeo: Indomit São Paulo/ São Bento do Sapucaí

Taí o vídeo de uma das corrida mais duras e belas que já fiz. Se alguém estiver pensando em um desafio sensacional pela inigualável Serra da Mantiqueira, recomendo fortemente. 

Até porque, provavelmente, esse é um que eu repetirei em 2017!

https://www.facebook.com/plugins/video.php?href=https%3A%2F%2Fwww.facebook.com%2Fbombinhasrunners%2Fvideos%2Fvb.289838951129935%2F990101871103636%2F%3Ftype%3D3&show_text=0&width=560

15km improváveis

Um casamento me levou para uma praia improvável: Itapoá, no litoral de Santa Catarina. 

O improvável foi sensacional. 

Com temperatura acima dos 30 graus, céu sem uma única núvem para manchar o azul, saí para 15km pela areia firme, quebrada apenas por um ou outro riacho adoçando o mar a partir do verde do outro lado. 

Tinha tudo que eu mais gosto: calor, sol, visual e um vazio daqueles que força a mente a viajar e o peito a se encher. 

Tinha também um mergulho bem vindo acompanhado de uma ultra bem vinda nadada salgada, um vai-e-vem que chegou a dar tontura por conta das marolas que balançavam o corpo. 

Nem parecia real, aliás: no dia anterior eu estava em São Paulo; na mesma noite de hoje, já escrevo este post da minha casa em meio à selva cinza da metrópole. 

Tanto melhor: o improvável ganha tons de sonho quando ocorre em um intervalo tão curto de tempo. 

Para contrastar – mesmo porque contrastes são perfeitos para marcar bem os acontecimentos – pretendo rodar mais 15km amanhã por um cenário oposto: algo como Barra Funda ou região da Luz, no centro velho. 

Algo que troque o ar cristalino soprado pelo mar pelas ondas cinzas da história paulistana.

Algo que troque a ingenuidade da praia pela malandragem da cidade grande. 

Algo que me permita digerir melhor no corpo essa viagem mental que foi correr, em um dia como outro qualquer, na mais improvável das praias para um baiano radicado em São Paulo. 

Improvável e, acrescente-se, absolutamente perfeita. 

  

Indomit São Paulo Ultra Trail: Relato da prova

Tenho para mim que poucos lugares no Brasil são tão maravilhosos quanto a Serra da Mantiqueira. Seu verde clorofilático, suas montanhas, a majestosa Pedra do Baú e as pequenas cidades que polvilham a paisagem, encrustrando-se entre os vales, se somam em um cenário ímpar, inesquecível.

Foi por isso que me inscrevi na Indomit São Paulo. Por isso, claro, e pelos 3 pontos que cruzar a linha de chegada me daria para a UTMB.

Cruzei a largada já encantado com a paisagem de São Bento do Sapucaí – principalmente quando começamos s subir e deixamos a névoa que encobria a manhã para baixo.

Tudo era tão bonito que difícil foi não parar para tirar fotos e simplesmente respirar a Mantiqueira.

Pelo menos até determinado ponto.

Em algum momento lá pelo km 15, comecei a ouvir muitas preocupações quanto ao tempo de corte no km40 ena prova em si. Olhei pra o relógio e para cima.

Nas outras Indomit que participei, o terreno encharcado transformou as tantas trilhas técnicas em um pesadelo. Nessa, praticamente não havia trilhas técnicas e tudo estava relativamente seco – mas as dificuldades foram outras.

O calor, por exemplo, batia facilmente os 35, 37 graus. E isso não era nada perto da altimetria insana: os 3.500 metros de subida em 50K eram crueis. Árduos, áridos, gerando cenas com direito a corredores encostados em algum paredão vomitando seus estômagos para tentar manter guardadas as almas.

Em um determinado ponto, o coração disparava incerto, remexendo as entranhas inteiras. Onde achava sombra, parava para respirar e descansar uns minutos. Mas não muito: pela primeira vez na vida me senti pressionado por um cut-off e sabia que fotos e descansos deveriam ficar para uma outra prova.

Nesses momentos de cansaço extremo uma outra dificuldade se abateu: a falta de água. A temperatura engolia as mochilas de hidratação com uma sede insana, quebrando sem dó o planejamento da organização. Pelo menos 3 ou 4 dos 10 postos estavam secos quando eu passei, forçando os corredores a seguirem em frente bebendo apenas a força de vontade. Um deles foi especialmente marcante: o do corte no km40, depois de uma interminável subida. Passando por ele, um grupo de 5 ou 6 corredores estavam sentados no meio do estradão perguntando a quem passava se eles tinham água para compartilhar.

Eu ainda tinha alguns goles e, assim, fomos dividindo a sede por uns 3 ou 4km (de mais subida sob o sol, claro).

Os meros 15 minutos de folga com que eu tinha passado no corte do km40 foram evaporados pela força do sol e da altimetria. Àquela altura, muitos corredores haviam ficado no corte ou desistido e eu já duvidava se conseguiria chegar antes das 10h de prova – principalmente depois que me deparei com um trilha estilo vala, onde correr era impossível. Fui lento, tentando recuperar um pouco o organismo remexido e aproveitando cada milímetro de sombra e descida. 

Funcionou: depois de uns 3km, estava inteiro. O tempo, no entanto, já era inimigo.

Corri o quanto pude, usei os poles para forçar velocidade nas subidas, parei o mínimo possível. 

Quando cruzei a linha de chegada já havia estourado o tempo: 10h11m31s. 

Ainda assim, alguma compaixão deve ter acometido os organizadores que me deixaram cruzar, penduraram a medalha no meu peito e me entregaram a camiseta de Finisher. Se esses 11 minutos me tirarão os 3 pontos para Mont Blanc ainda não sei – mas espero que não.

Descobrirei no futuro próximo.

O balanço da prova? Linda como poucas, dura como menos ainda, com algumas falhas da organização mas, ainda assim, altamente recomendável. Altamente.

Com ou sem pontos, mesmo com o cansaço e os miseráveis 11 minutos e 31 segundos, testemunhar esse percurso foi, por si só, algo inesquecível.

Tão inesquecível que, embora ainda com as dores do dia seguinte, já ouso dizer que são grandes as possibilidades de eu voltar no ano que vem.

(Só espero que eles aumentem esse tempo de corte para que pelo menos possamos parar em alguns pontos para aproveitar a paisagem, esse sim o ponto mais alto da prova!)

   
    
 

Acaba, semana!

Faltam mais 2 dias. 

Ou 1, considerando que amanhã à tarde zarpo para São Bento do Sapucaí. 

Não é a ansiedade da prova que está me comendo hoje – é o cansaço do trabalho. É esse exaustivo ritmo de Brasil em crise, com ânimos exaltados e ações em permanente estado de alerta, de expectativa e de surpresa. Trilhar a selva paulista tem sido uma tarefa muita mais técnica do que qualquer trilha da Indomit. 

Ainda assim, hoje é quinta. 

É dia em que o horizonte do descanso está mais próximo, mais visível. 

Preciso recarregar as baterias trocando cabeça por pernas lá na Serra da Mantiqueira. 

  

Chuva, chuva, chuva

Essas últimas duas semanas deveriam ser as mais secas e quentes do sudeste ao menos no último ano. Eu nem pediria tanto: ficaria feliz apenas com a falta de chuva. 

Mas não: os Deuses, aparentemente, curtem sincronizar as suas águas com o calendário da Indomit. Comigo, pelo menos, foi assim nos 42K de Bombinhas e nos 100K da Costa Esmeralda. 

A Indomit São Bento do Sapucaí, ao que tudo indica, será tanto corrida quanto nadada. 

Cheguei até a questionar a ida – a perspectiva de escorregar e de tentar me equilibrar em rios de lama me dá uma preguiça digna de Macunaíma. 

Mas aí tem os pontos. Os tais 3 pontos que essa prova me garantirá para a OCC, em Mont Blanc, no ano que vem…

Haverá outras oportunidades para somá-los? Certamente. Provavelmente. 

Mas, em um ano complicado em que o calendário de viagens para corridas ficou invariavelmente mais escasso, melhor garantir do que esperançar. 

Águas, nos veremos no sábado.

   

Nos calcanhares da história paulistana

Ainda não entendi como, mas o fato é que, já desde o domingo, não sentia nenhum tipo de cansaço físico no corpo. Tinha episódios de sono súbito – mas essa foi a única consequência de ter intercalado um total de 84km em 46h36m diretas, sem dormir por mais que um punhado de minutos encaixado no banco da frente do carro de apoio na BR135+.

Longe de mim querer questionar o próprio corpo: aproveitei o feriado e, claro, saí para correr. 

Desta vez, no entanto, uni a vontade à curiosidade histórica: tracei uma rota que saiu do MASP, e cruzando a 9 de Julho, chegou no Obelisco de Piques. Explico: ontem, 25 de janeiro, foi aniversário de São Paulo – e esse obelisco é considerado o primeiro monumento inútil de São Paulo. A importância disso? 

Foi a primeira vez que a cidade decidiu construir algo com o único propósito de se embelezar e preservar a sua história. Foi, portanto, a primeira vez que a cidade se enxergou com algum tipo de “vaidade urbana”, de orgulho, até mesmo de sensualidade. E isso em 1814, quase 300 anos depois de ter sido fundada, período em que era apenas uma vila bruta, feita de gente brava em todos os aspectos dessa palavra. 

Em minha opinião, a história da São Paulo moderna começou nesse obelisco – que eu ainda não conhecia. 

Bom… o obelisco era melhor na minha memória do que na realidade. Hoje, é um pequeno monumento pichado, imundo e servindo de latrina pública para todo um mar de mendigos que se estendem pelo local. 

O primeiro marco do orgulho da cidade, infelizmente, se transformou em um símbolo perfeito do descaso para com ela mesma, sua história e sua feição. 

  
Saí de lá. 

Decidi rodar um pouco pelo centro, cortando o Vale do Anhangabaú, passando pelo Mosteiro de São Bento, pela Praça Antônio Prado e outras, cada uma com algum pedaço incrível de história dessa cidade que tanto amo. Algumas, ainda bem, ainda preservadas – como o primeiro “arranha-céu” da cidade, com apenas 7 andares próximos ao atual Edifício Martinelli. 

  
O velho centro começou a ser abandonado quando a elite decidiu literalmente subir a serra em busca de ares melhores. Com o Viaduto do Chá, ela cruxou o vale e se instalou nos Campos Elíseos – um dos lares da Cracolândia de hoje. Alguns palacetes de lá ainda persistem, usando a grandeza para combater os ares de decadência. 

Subi mais. Até o segundo dos bairros nobres pós-centro, Higienópolis. Subi a Nothmann até a Angélica, passando pela majestosa catedral que herdou a função do Pátio do Colégio depois que os jesuítas foram expulsos. Cheguei a entrar na igreja apenas para vê-la de perto, por dentro, para respirar os ares da história. 

E, de lá, terminei no terceiro dos bairros nobres, a Paulista dos barões do café e dos primeiros industriais. Foi onde terminei essa homenagem minha a São Paulo, seguindo uma espécie de “caminho da riqueza” ao longo de seus quase 500 anos de vida. 

E por que escrever tudo isso aqui, em um blog de corrida – e não de história? 

Porque uma das maiores preciosidades de correr, para mim, é poder se desligar do presente e atravessar o tempo, imaginando o passado e projetando o futuro. É um tipo de corrida diferente, claro – mais metafísica do que física, mais espiritual do que muscular, mais intensa do que cotidiana. 

E, de vez em quando, é o tipo mai perfeito de corrida que pode existir. 

Tomara que um dia São Paulo volte a se cuidar melhor e deixe de ficar tão abandonada quanto está hoje. 

Enquanto isso, permanecerei correndo e, claro, sonhando.

   

Descobrindo novas cidades em trilhas urbanas

Quem corre em trilhas gosta – obviamente – de um contato mais intenso com a natureza. Não quero dizer nada exatamente “zen-zóide”, claro – mas cortar montanhas, subir pedras que desembocam em vistas quase lisérgicas, traçar caminhos em areias de praias ou em dunas… Tudo isso tem um encanto bem maior do que qualquer prova de rua. 

Só que eu moro em São Paulo.

Há trilhas por aqui? Há, claro. Consegue-se descobrir trechos de “mini-florestas” em pequenos parques como o Burle Marx ou o Alfredo Volpi, na lateral do Ibirapuera, no sensacional Parque do Carmo ou até mesmo dentro da USP. Mas, ainda assim, são circunferências protegidas, muralhadas, fechadas. 

E como juntar a necessidade de desbravar novas matas com estar em uma paisagem tão urbana? 

Aproveitando-a – claro. Há vantagens em se estar em uma cidade como Sampa: cada esquina tem sua história, tem seu motivo, tem seu contexto. Cada bairro esconde seu segredo, sua origem de nobreza ou pobreza, seu futuro incerto traçado nos rostos de seus moradores. 

E, mais, há uma infinidade de possíveis trilhas, embora todas essencialmente urbanas, que se pode fazer em São Paulo. A de ontem, por exemplo, foi diferente. Larguei da represa de Guarapiranga, em um dos extremos da capital paulista, saindo de uma avenida batizada, por ironia ou inveja, de Atlântica. Margeei a represa enquanto jet-skis, wind-surfs e veleiros a coloriam de calma. 

E, por lá, cruzei o bairro do Socorro, entrando pela Santo Amaro. Parei na estátua do bandeirante Borba Gato, imensa, meio esquisita, com um olhar meio que distante buscando novos horizontes a desbravar. Poucas cidades no mundo homenageiam genocidas tanto quanto São Paulo: ignora-se as vidas que eles ceifaram, exalta-se o espírito aventureiro com que adentraram as matas e clamaram terras. Eis a vantagens dessas trilhas urbanas: elas nos ajudam a entender melhor os tantos detalhes que fazem as grandes cidades grandes. 

  
Deixei o bandeirante para trás e segui. Aos poucos, o cenário foi mudando: casinhas com cheiro de tristeza e praças abandonadas foram ficando mais verdes; igrejas reformadas apareceram, carros se renovaram nas vias, verdes ficaram mais vibrantes. Pequenos botecos sumiram de vista e, ao pé de prédios luxuosos, bares charmosos exibiam letreiros bem desenhados e dentes bem tratados. Entrei na Hélio Pellegrino e subi até o Ibirapuera. 

Meu velho amigo, o parque de todo dia, estava lá recebendo os costumeiros visitantes de domingos ensolarados. Ao invés de cortar caminho, alonguei-o para poder pegar um pouco do solo do Ibirapuera no tênis. Fiz meio parque até sair na República do Líbano e traçar meu caminho de volta. 

Da represa até a porta da minha casa, com apenas um ou outro desvio, foram 20km. 20km, diga-se de passagem, em que toda uma série de São Paulos diferentes desfilou para mim. 20km de um mar inexistente, de bairros empobrecidos, de arranha-céus, de parque, de cidade grande. 

Quer maneira melhor de aproveitar uma metrópole assim do que fazendo uma trilha urbana por ela? 

   

Correndo pelo passado

No começo do século XVII, uma corrida pelo planalto que se elevava sobre o Anhangabaú revelaria uma São Paulo bastante diferente. Claro: alguém correndo só pelo mato há mais de 300 anos provavelmente geraria uma estranheza tamanha que, eventualmente, acabaria na forca. Mas ignoremos isso por alguns instantes ao imaginar a cidade de São Paulo pouco tempo depois do Anchieta ter fundado o seu colégio jesuita. 

O próprio conceito de cidade, aliás, era outro: ao invés de uma imensa metrópole, era uma vila composta por uma punhado de loucos desbravadores e delimitada por três igrejas. 

Em uma das pontas ficava a Igreja de São Francisco. Apesar de feita de taipa, como todas as construções da época, era tão suntuosa quanto a própria ironia dado o santo que homenageava. Ficava no alto de uma colina, praticamente de frente para o Anhangabaú. Bote-se que, à época, o vale era puro mato pantanoso, provavelmente de um verde gritante, marcado apenas por alguns poucos aldeamentos indígenas e por eventuais colunas de bandeirantes que buscavam rasgar os interiores à procura de escravos e riquezas. 

  
Na outra extremidade, quase em uma linha reta e ignorando a Praça da Matriz (que eventualmente se transformaria no coração do centro com a construção da Sé), chegaríamos ao Carmo. De todas, era a igreja mais suntuosa e muito bem localizada.

   
 Ficava a poucos passos do Pátio do Colégio, primeira construção do homem branco na região, e provavelmente ainda tinha alguns aldeamentos indígenas nas proximidades. 

  
O Carmo ficava em outra quina do planalto, de frente para o atual terminal D. Pedro e dando acesso a uma várzea imensa. Percebe-se por aí o quanto a região era perfeita para se erigir uma vila, contando com a natureza como principal arma de defesa. Aliás, era dali de uma da torre do Carmo que melhor se conseguia avistar qualquer “visitante” vindo do litoral, seja Santos, São Vicente ou Rio. Bastava que alguém visse o estranho perambular organizado de raros transeuntes e os sinos tocavam, sendo seguidos pelos da Matriz, de São Francisco e São Bento. 

São Bento seria a próxima igreja delimitando São Paulo, fechando o triângulo original do planalto. Mas, antes de chegar lá, o visitante se depararia com uma curiosodade: justamente na região de maior concentração de templos – Carmo, Pátio do Colégio e Matriz – ficava a famosa Rua das Casinhas. O motivo da fama: alinhada de pequenas casas que serviam de quitandas durante o dia, ela se transformava às noites em um dos maiores aglomerados de prostitutas de todo o mundo dito civilizado. 

  
Ignoremos o detalhe profano e sigamos rumo a São Bento, cujas origens tem também muito pouco do sagrado. Quem bancou a construção foi um dos principais bandeirantes paulistas, Fernão Dias, responsável por um genocídio quase sem precedentes junto às populações indígenas. Outros tempos: ao invés de condenado, claro, seus “esforços civilizatórios” foram recompensados por um túmulo de destaque no altar. 

  
Olhando o parapeito do mosteiro beneditino, aliás, um corredor perdido no tempo teria testemunhado uma cena incrível. Inconformados com a confusão causada pelo fim da União Ibérica, os paulistas se revoltaram e decidiram declarar um estado próprio, aclamando um de seus cidadãos (de origem espanhola, diga-se de passagem), Amador Bueno, como Rei. Este, calculando o perigo e a morte certa que o esperaria, recusou veementemente a oferta jurando fidelidade à Coroa Portuguesa. A pequena multidão mudou os ânimos de aclamação para indignação e ele acabou se refugiando no Mosteiro, de onde falou à população pedindo calma e conseguindo se esquivar do que seria um destino fadado à forca. 

Entre igrejas, cenas tragicômicas, colunas de bandeirantes genocidas, muito mato e agrupamentos indígenas em todo canto, São Paulo estava longe de ser o que é hoje. E por que falar de tudo isso em um blog de corrida? 

Porque correr, claro, permite também se ignorar o tempo e aliar a vista seletiva a uma viagem por outras épocas. Permite se ignorar ônibus, mendigos e fuligem, pixações e fiações, depredações e vandalismos, e se focar no que seria o percurso corrido há 300, 400 anos. 

E, claro: qualquer cidade que corramos nos permite isso. Mas quanto mais diferente for o passado e o presente, mais impactante, mais “chocante” será a percepção. 

Uma corrida de domingo pode revelar muito mais do que tempos e paces. 

  

Checkpoint: Tentando me livrar da angústia

Quer irritar alguém que tem como principal remédio mental passar horas a fio correndo por ruas e trilhas? Deixe a sua mente motivadassa e as pernas mastigadas de tanto cansaço. 

Pouca coisa resume melhor esse meu fim de novembro. Exausto sem “motivo de curto prazo”, já que acumulei apenas 40 míseros quilômetros na última semana, cheguei a cancelar meu longão de ontem por pura incapacidade física. A dor, embora não lascinante, era de uma constância insuportável. 

Em comparação, era como estar com uma permanente febre de 37: nada que prendesse o corpo à cama mas, ao mesmo tempo, o suficiente para barrar qualquer atitude mais “viva”. 

O que fazer em situações assim? Dar tempo ao tempo e tirar uma espécie de férias pode, afinal, curar o corpo e afundar a mente na areia movediça do sedentarismo conformista, preguiçoso. Para alguém com a minha história, que teve a vida literalmente salva pela corrida, isso assusta demais. Forçar a barra, então? E se o que está ruim piorar? Que alternativa será deixada? 

Em meio a esses conturbados pensamentos, calcei o tênis, desliguei a angústia munchiana e saí.

A meta: um “longuinho” de 20km por um dos meus roteiros preferidos, o centro de SP. 

Por um tempo, devo dizer que foi uma boa decisão: sempre se pode confiar no inspirador contraste entre a imponência neo-clássica do Martinelli e a podridão dos mendigos da Sé. Há tanta beleza decadente, tanta promessa de futuro chafurdada no mais abandonado dos passados, que se consegue praticamente sentir o tempo em cada passada. 

O longuinho ajudou – mas também cansou mais do que deveria, um lembrete do péssimo estado geral em que o corpo está. Não vou dizer que me arrastei até em casa: o descanso de ontem fez algum bem, afinal. 

Mas o roteiro do centro à Liberdade ao Parque da Aclimação e de volta via Paulista, que poderia ter sido bem mais incrível, acabou mais sofrido que o esperado. 

Mas quer saber? Pelo menos encheu o peito com uma dose de endorfina a mais. 

Que essa dose dure e inspire a próxima semana.