Tempo é algo extremamente relativo para quem corre.
Para qualquer outra pessoa, o dia costuma ser dividido, a grosso modo, em dois grandes pedaços: um apressado, feito de tarefas, prazos e compromissos profissionais, e outro doméstico, quando se começa a cuidar do outro lado – o mais importante, diga-se de passagem – da vida.
Entre um e outro, no entanto, há tempo para se criar um novo pedaço de Tempo.
Digo mais: a meu ver, é o Tempo mais sagrado de todos por ser absolutamente egoísta, por ser exclusivamente seu e feito para que se curta a si mesmo. Ele não costuma começar promissor: o despertador soando às 5 da manhã dificilmente empolga. Mas, aos poucos, acaba-se cedendo à expectativa de se aproveitar esse Tempo.
Aos poucos, roupas vão se trocando, portas vão se abrindo e, de repente, você está lá, só, de frente para uma rua vazia iluminada apenas pelos primeiros tímidos raios de sol.
Você segue.
Passos ritmados, fone ecoando alguma coisa desimportante qualquer. A vida passa em revista, com o dia atual servindo de marco entre o passado recente e o futuro distante. O pensamento viaja por projeções esculpidas sobre a vida alheia de outros corredores, de outros cotidianos, de outras possibilidades.
Cruzando um portão, o asfalto se transforma em trilha e os prédios, em árvores. Tudo muda. Os raios do sol, mais lineares e nítidos, parecem desenhar cores pioneiras nos troncos enquanto mente segue viajando sabe-se lá por onde. O ritmo vai mudando: tempo runs, intervalados, trotes, todas as modalidades se alternam prendendo o corpo a alguma coisa que lembre um planejamento prévio. A mente fica indiferente: tudo o que ela consegue fazer é aproveitar aquelas cenas, aqueles cheiros, aquele calor maravilhoso que assa a pele sob um céu já permanentemente azul.
Tudo é incrível.
E tudo dura pouco mais de 1h30.
A extensão desse Tempo, desse momento intermediário entre os períodos normais, é relativamente pequena. Ainda assim, parece gigante por ser o único não dividido ou compartilhado com absolutamente ninguém além de si mesmo e da própria imaginação.
Depois dessa corrida que beira o surreal, cruzar o portão de casa para começar o primeiro dos Tempos normais é como iniciar um novo dia.
Um novo dia no mesmo dia – mas devidamente dotado de uma espécie de paz interior que poucos conseguem sequer entender.
Que maravilha, Ricardo.
Não pare de escrever, nós do outro lado da tela agradecemos.
Puxa, obrigado Mara! Fiquei até vermelho :-)