Depois dos pantanosos 50K do sábado, comecei a me perguntar quais seriam, de fato, as condições ideais de ultra para mim. Todos tem a sua preferência, afinal – há desde os que curtem trecos como a mega úmida e tensa Jungle Marathon às secas e empoeiradas travessias em deserto.
E eu?
Bom… Descobri que tenho alguns parâmetros do que faz uma ultra ideal para mim. Vamos a algumas de suas características:
Percurso
O campeonato mundial de ultras de 2014 foi em Doha, perfazendo 100km em voltas de 5K. Honestamente, eu enlouqueceria.
O percurso ideal para mim é ponto-a-ponto ou circular, permitindo que se consiga desbravar cenas novas a cada passada. Ver é quase tão importante quanto correr e passar 3 ou 4 ou mais vezes dando voltas entedia. Bastante.
Altimetria
Há dois lados para essa moeda. Quanto mais intensa a altimetria, mais belas tendem a ser as vistas; quanto mais plana, mais rápido o percurso.
Curto as duas alternativas e julgo um meio termo como ideal. E, por meio termo, entenda-se qualquer coisa que varie de 2 a 4 mil metros, com alguma margem, em uma ultra de 80K.
Dá para correr e aproveitar cenas incríveis ao mesmo tempo.
Terreno
Asfalto, aqui, não entra na preferência – mas o estilo de pura aventura, sem demarcações e com surpresas como rios a serem atravessados e barrancos a serem escorregados, também não. Aliás, em uma comparação direta entre esses extremos, o asfalto ganha de longe.
Percursos pantanosos, mega úmidos e cheios de imprevistos são coisas que procurarei evitar ao máximo. Terrenos assim nos fazem passar boa parte da prova olhando para o chão para evitar quedas desnecessárias – algo bem distante do meu estilo.
O ideal? Uma mescla qualquer entre estradas de terra e single tracks que até podem ter alguma dificuldade, claro, mas que não sejam assim tão “infernais”.
Tendo dito isso, cabe uma observação: provas como a Comrades são um ponto totalmente fora da curva. Sim, ela é em asfalto por 90km – mas com tanta gente correndo e torcendo e com tanta história que faz todo o tempo parecer um sonho.
Distância
Para mim, distância não é exatamente um problema. Descobri que tenho uma tolerância relativamente alta por passar loooongos tempos na estrada – o que costuma vir com quilômetros e mais quilômetros de percurso.
Não sou muito rápido – principalmente porque curto tanto estar em uma ultra que paro de tempos em tempos para tirar fotos e aproveitar a experiência. Além disso, convenhamos: para que se matar na velocidade quando se sabe que um podium é impossível e em um esporte com tantas variáveis por prova que mesmo medir recordes pessoais fica complicado?
Mas ainda me falta mais experiência em distâncias maiores: o máximo que fiz, até hoje, foram 90km. Ainda preciso experimentar alguma prova de 100km e de 100 milhas. Não minto que 100 milhas me assustam um pouco – mas um dia chego lá.
Tecnicalidade
Desde que não seja nada que coloque a minha vida em risco, qualquer coisa é bem vinda.
Claro: ter algum percurso que permita a corrida (e não só trekking) ajuda: afinal, é ela que mais facilita o fluxo livre da endorfina. Além disso, não sou um trilheiro muito safo: a insegurança às vezes bate com maior força que deveria antes de algum movimento mais complicado.
Mas, isto posto, não posso dizer que tenha nenhuma restrição mortal quanto a escaladas ou descidas minimamente complexas.
Ao menos desde que o percurso como um todo seja feito para ser aproveitado, não temido.
Temperatura
Nunca corri em extremos – seja um calor de 50 graus do Saara ou um frio ridículo ao estilo Antártico.
Mas não teria nada contra. Para falar a verdade, a temperatura acaba sendo justamente a cereja do bolo de algumas provas. Ou alguém vê alguma graça em uma Badwater sob amenos 20 graus?
Umidade
Seca. Esse é o segundo dos dois únicos pontos que sou um pouco radical – e pelo mesmo motivo. Não gosto de umidade em excesso justamente porque ela costuma acompanhar percursos quase impossíveis com muita lama e oportunidades abundantes para se escorregar e se esborrachar no chão.
Sou ruim de equilíbrio, possivelmente em todos os sentidos, e não gosto tanto de colocar isso à prova o tempo todo.
Apoios
Não tenho nenhuma preferência aqui – desde que as regras sejam cumpridas. Ou seja: se uma ultra for autosuficiente, então esperar postos de apoio com água e comida é uma imbecilidade. A autosuficiência, nesses casos, é parte da prova, um desafio a mais.
Mas, se houver postos espalhados, o ideal é que pelo menos alguns tenham refrigerante ou infra para um bem vindo descanso de 5 minutos no meio da prova.
O “fator exótico”
Correr em um lugar diferente, inusitado, sempre soma pontos extras para qualquer ultra. A vida, ao menos em meu entendimento, é feita para aproveitarmos ao extremo cada segundo de consciência que temos. E aproveitar ao extremo significa sair do cotidiano e se entregar ao exótico.
Assim, correr nas montanhas da Patagônia, entre as vinhas do Douro, no deserto, em Comrades, na Mata Atlântica, na praia ou em qualquer outro cenário “diferente” sempre valerá a pena – mesmo quando todos os outros fatores estiverem jogando contra.
O resumo
Ultras são ultras: são feitas para testarmos nossos limites físicos e (principalmente) mentais.
Mas são feitas também para honrarmos a nossa própria vida, entregando ao coração experiências que ele jamais esquecerá.
Não me considero muito exigente aqui: tendo 50 ou mais quilômetros – o suficiente para garantir um bom tempo correndo – quase qualquer coisa vale.
Quase: o limite, para mim, é a linha que separa o aproveitamento de uma experiência memorável do estresse de passar horas olhando para o chão para não cair de cara (ou em um precipício).
Fora isso, é tudo uma questão de se entregar a uma experiência nova, de mergulhar em si mesmo e de se permitir entrar em uma zona mental tão intensa que o final sempre trará uma noção mais cristalina de quem realmente somos.
