Terça.

Que o dia hoje seja tão leve quanto as suas primeiras luzes.


(Não seria nada mau ter menos turbulência aqui no Brasil para variar um pouco.)

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Cantareira

Fazia tempo – muito tempo – que eu planejava desbravar o Parque da Cantareira. 

Nas duas tentativas anteriores dei de cara com o portão fechado: o parque abre para o público apenas quando as condições meteorológicas indicam possibilidade nula de chuva. E, com isso, a soma da distância da minha casa com o imprevisível do tempo foi deixando o parque lá no fundo da mente, como uma espécie de meta de treino a ser cumprida um dia. 

O dia foi hoje. 

Tinha uma maratona planejada para o treino, o que, por si só, já abria espaço para uma corrida até o final da Zona Norte. Chequei a meteorologia: nada de sol a pino, infelizmente – mas nada de chuva também. 

Segui. Na pior das hipóteses, imaginei, rodaria pelo Horto. 

Não foi necessário: às 8:15, quando cheguei na entrada do Núcleo Pedra Grande, a bilheteria estava aberta e algumas pessoas já perambulavam por lá. 

Entrei. 

Desliguei o podcast. 

Respirei o ar da Cantareira e me concentrei em tudo o que estava ao redor: pássaros, macacos, o cheiro da mata virgem, o ar limpo como São Paulo sonha em ter. 

Tomei o rumo da Pedra Grande. Confesso que não gostei do caminho até lá ser por asfalto, muito embora em (perfeitas) más condições e serpenteando por um caminho que mais parecia ter sido retirado do paraíso. 


Não marquei a quilometragem até lá: estava tão entusiasmado com a beleza do local que esqueci desse detalhe. Detalhe mesmo, reforço: há algumas corridas tão em sintonia com tudo o que existe que qualquer tentativa de marcação ou controle mais parece ingenuidade. 

Sejam lá quantos quilômetros tiverem sido, em algum tempo cheguei a uma clareira. Olhei: era a Pedra Grande. Subi. 

Mal acreditei: em minha frente, um paredão de floresta virgem parecia abraçar a maior metrópole da América do Sul, apequenando-a, emoldurando-a como se fosse apenas um ponto cinza no mar verde. Uma outra perspectiva da cidade se desenhou em minha mente: nada de uma São Paulo disforme, gigante, metendo medo na natureza com seu poderio industrializador: de lá do alto da Cantareira, a cidade parecia tímida, como que encolhida no pouco espaço que a natureza permitiu à civilização. Difícil até de imaginar essas palavras – talvez sejam do tipo que só vendo para crer. 


Passei alguns minutos ali, tentando registrar em fotos aquela beleza poderosa. Falhei. Nem os filtros do Instagram fizeram as imagens chegar aos pés da realidade. 

Segui em frente na corrida, dando a volta na Pedra e voltando. No caminho, entrei pelas trilhas que apareciam: do Bugio, das Figueiras, da Bica. Todas pequenas, de 1 a 1,5km – mas todas permitindo uma incursão mata adentro por single tracks perfeitos. Daria para passar horas ali apenas vendo, ouvindo, sentindo. 


Bebendo das bicas pelo caminho com aquela água clara, gelada, deliciosa. Voando trilhas abaixo, naquele tipo de brincadeira de velocidade que sempre termina com um sorriso involuntário no rosto do corredor. 

Daria para ir e voltar pela estradinha incontáveis vezes. 

Só que era hora de voltar. 

O retorno, aliás, ajudou na perspectiva: me imaginei entrando naquela minúscula cidade que vi de lá da Pedra Grande. 

Minúscula de longe, imensa de dentro: cruzei a Zona Norte, atravessei a Marginal Tietê, voei pela Barra Funda, subi a Pacaembu. Ao meu redor, só gigantezas: as avenidas, os zunidos, os prédios, as casas. 

Em um dado ponto, olhei para trás: dava para ver apenas alguns morros distantes ao fundo – morros que pareciam tímidos de tão pequenos. Nada de paredão verde, de floresta, de mata atlântica: estava no inverso. 

Mas pelo menos já sabia que o que via não era, necessariamente, o retrato da realidade. 

  

Business as usual

Indomit SP já está no passado. Apesar dos aprendizados, com uma boa notícia colhida ontem: no final das contas, mesmo tendo estourado o tempo em 11 minutos, a organização me considerou concluinte e acabei ganhando os três pontos para Mont Blanc – ufa! 

Agora é seguir viagem – ou melhor, seguir no treino rumo aos sertões em agosto. 

E não dei muito sossego para o corpo essa semana. Sim, as dores no corpo que permaneciam me geraram a prudência de evitar os 10K previstos para a terça – mas, como acabei me sentindo zerado no dia seguinte, encaixei 10 a mais ao longo da semana. E hoje, pressionado por um compromisso às 10, levantei às 5 para rodar 30K.

Não tenho problema de acordar às 5 – até gosto, por incrível que pareça. A cidade fica vazia, o silêncio impera e todos os caminhos parecem mais abertos. O problema é a escuridão – demais para ir correndo atravessar a Marginal ou perambular pelo centro que, sem a luz do sol, fica tomado por zumbis. 

Conclusão? Fui pro Ibirapuera! 4 voltas grandes pela trilha somada à ida e volta faziam o tempo perfeito. Só que faziam, também, uma espécie de tédio perfeito. 

Como conseguirei rodar provas de 6 ou 12 horas em pista, uma de minhas metas futuras, não tenho ideia: mas a última volta foi percorrida com direito a xingamentos e a uma quase – quaaaaaaase – desistência. 

Treinamento para a alma, talvez? Se for, que bom que acabou concluído. 

Amanhã tem mais. 

Ou, como se diz no jargão corporativo, “business as usual”. 

(Que bom que, nesse caso, isso significa testemunhar cenas como essas abaixo):

   
 

De volta ao Ibirapuera

Não vou mentir: estava sim cansado, com a musculatura meio dolorida e os olhos pesados. Mas a vontade de voltar à ativa foi maior: saí no final da tarde e me esbaldei em 20km pela trilha que circunda o Ibirapuera.

Teve um pouco de tudo: audiobook entoando histórias de lugares distantes, pôr do sol colorindo o obelisco e o lago, casais se encontrando (sob todos os aspectos) e um caminho vazio, livre, aberto, feito de terra ocre temperada por galhos e pequenas poças denunciando a chuva dos últimos dias.

Parecia que o parque estava me esperando.

Ainda bem que apareci. Foi como se tanto eu quanto ele – o Ibirapuera – tivéssemos ficado aliviados.

  

O Gambá-Rei do Ibirapuera

Tenho o hábito de correr cedo – bem cedo. Chego no Ibirapuera ainda antes do sol nascer e, dependendo da época do ano, saio também antes das primeiras luzes acenderem o dia. 

Nesse tempo todo, me acostumei a ver pequenos vultos cruzando o parque, principalmente quando vou pela trilha na companhia daquele cheiro de mato tão incompatível com São Paulo. São tatus, gatos e mesmo ratos que fazem daquela zona – inteligentemente – as suas casas. 

Hoje, no entanto, aproveitei que o ritmo do trabalho estava diminuindo com o final de ano e saí com o sol já pintando o céu de azul e vermelho: dei meus primeiros passos às 6 em ponto. Pareceu que estava em outra cidade: havia mais gente dividindo a pista, os carros seguiam em linhas retas (afinal, não estavam mais sendo conduzidos por bêbados varando a madrugada) e o tipo de calmaria era diferente, mais leve e menos assustadora. 

Não esperava, portanto, cruzar com nenhum dos pequenos vultos que me fazem companhia de madrugada: imaginei que todos já estivessem devidamente entocados e escondidos da confusão. E a maioria provavelmente estava mesmo – exceto por um.

Em um brado de coragem, no meio de pessoas e bikes, um gigantesco gambá decidiu, de repente, atravessar a pista. Lentamente. Soberanamente. Arrogantemente.

Ignorava tudo e todos, como que deixando claro que era ele o dono de tudo aquilo. E quer saber? Parecia ser mesmo. Bikes desviaram, corredores pararam para tirar fotos e até os trabalhadores do parque, que começavam a assumir os seus postos, murmuravam qualquer coisa entre si. Ninguém ousou chegar perto demais ou atrapalhar a vagarosa caminhada do Gambá, aparentemente o rei do parque. 

Decidi segui-lo de perto para fora da pista, até o gramado. 

Ele parou e se virou para mim, como que me reconhecendo das outras madrugadas. 

Me olhou, reprovando esse atentado ao seu direito de solidão, e ficou imóvel por alguns instantes. 

Depois, voltou a me ignorar, ciente de que ninguém ali seria capaz de fazer qualquer coisa contra ele, e seguiu no mesmo ritmo lento. 

Não desisti e fui atrás do meu “amigo  por mais algum tempo, desta vez contando com o seu total desprezo pela minha presença. Ele nem sequer tentou se fazer invisível: em um par de segundos, sem quebrar o pace, ele virou para uma árvore – uma das grandes que pontilham o parque e que fazem parte da sua paisagem – e entrou em uma toca que eu jamais havia percebido. Estava em casa. 

O Gambá não saiu mais de lá: provavelmente estava na hora de descansar de uma noite de caça intensa pela selva do Ibirapuera. Eu, por outro lado, não tinha mais o que fazer. 

Nós dois, afinal, tínhamos as nossas vidas para tocar.

E, no fundo, nós dois sabíamos que nos veríamos de novo em breve, seja em alguma outra madrugada ou em outra manhã corajosa como aquela.

Dei dois passos para trás e segui meu rumo. 

   

A dor que veio de penetra

De repente, no meio do Ibirapuera, uma dor difusa começou a se espalhar pelo joelho direito.

Ignorei. 

Segui em frente, confiante de que não haveria de ser nada. Por via das dúvidas, conferi e endireitei a postura. 

A dor passou. 

Maravilha: continuei. Fechei a volta no Parque, cruzei a República do Líbano, adentrei a Groenlândia. 

Até que ela voltou – só que mais forte. Diminuí o pace. Melhorou.

Depois piorou. 

Caminhei.

Passou.

Trotei.

Voltou.

Àquela altura, a angústia já estava mais forte do que a dor em si – o que não significa que ela fosse de se ignorar. Em ritmo mais lento que o de um cágado, segui caminhando por quase 1km. Metas passaram pela cabeça, lembranças posturais pelo corpo, paces lerdos pelo Garmin. 

Em um determinado momento, percebi que não havia mais dor. Queria tentar de novo, trotar, correr, perguntar ao corpo se ele havia melhorado daquele esquisitíssimo “mal súbito”. Dessa vez fiz diferente: decidi voar tal qual o Usain Bolt na expectativa de que velocidade e biomecânica encontrassem algum tipo de equilíbrio. Acelerei, voando pela Estados Unidos e cortando as ruelas do Jardim Europa como raras vezes fiz no passado. A cada segundo fazia uma auto-análise: estava bem. A difusão da dor estava quase imperceptível de tão leve e, se muito, diminuía a cada passada.

Quando cheguei em casa estava quase intacto. Quase: alguma coisa esquisita, afinal, havia acontecido.

Ainda é cedo para saber o que foi – mas talvez valha uma corrida hoje à noite, em algum ambiente mais controlado, para que eu consiga entender se foi apenas um susto de mau gosto ou um sinal de algum mal maior.

Torçamos para que tenha sido só um susto.

  

Correria pura

Lá fora, um dia ainda escuro convidava os lençóis a ficarem mais pesados e confortáveis. O barulho da chuva ninava crianças e adultos e a temperatura meticulosamente ajustada do ar gerava uma sensação de paz quase uterina. 

Até que o despertador tocou. 

Cenário quebrado, era hora de enfrentar a chuva em busca de 15km com direito a três sessões de 15 minutos cada de tempo runs. Perfeito para começar a semana. 

Já saí do prédio ensopado, tomando banho de cima e dos lados quando os poucos carros que atravessavam a urbe às 5:15 da manhã decidiam surfar. Pulei poças, desviei aguaceiros e cruzei o que mais parecia um rio de lama até entrar no bom e velho Ibira. 

Lá, a chuva apertou. Muito. 

Tudo bem: gente não derrete. 

Apertei o passo, quase emendando um tempo no outro e aproveitando que a tempestade havia deixado todo o Ibirapuera para mim. Uma volta, duas voltas, retorno. 

As sessões de 20km da semana passada fizeram efeito: cheguei com a sensação de que ainda tinha muito gás para rodar. Nada de exageros: era hora de subir e tocar o dia que prometia ser bem mais intenso que eu imaginava. 

Tomei banho. 

Acordei minha filha e a arrumei para a escola. Fiz café. Me arrumei.

Desci para esperar a van escolar até perceber que não havia avisado que estava de volta a São Paulo e, portanto, ninguém passaria no prédio para pegar minha filha. 

Subi de volta e peguei a chave do carro. Olhei para o relógio: tinha meia hora para um call inadiável. 

Desci com ela no colo e, em tempo recorde, a coloquei na cadeirinha. Voei até a escola. Cheguei em 8 minutos, ao que se somaram mais 2 ou 3 até que alguém a pegasse do carro e a levasse para dentro da escola. 

Voltei: mais 12 minutos. 

Subi voando pelas escadas para não perder tempo: faltava ainda 3 minutos. 

Abri a porta esbaforido e ligue o Skype no exato instante que meu call começou a me chamar. Ufa! 

15 minutos depois, estava liberado. 

Para começar o dia, claro. Afinal, ainda nem eram 9 da manhã!

  

Parque da Cantareira?

Véspera de longão.

A vontade de deixar a cidade e correr para alguma trilha é intensa – para dizer o mínimo. O propsecto de correr por 3 horas (ou mais) é sempre positivo para mim, mas estou um pouco cansado de asfalto. 

Precisava de alguma trilha mais punk para animar pernas e alma, de alguma paisagem diferente de prédios, casas e palacetes pichados como os que decoram o centro de São Paulo. 

Pela previsão, amanhã vai fazer sol. Talvez seja o dia perfeito para eu visitar a Cantareira…

  

Deslocado

Sente-se – ou pelo menos eu me sinto – um alien ao sair para correr na hora do almoço. Tudo parece desritmado: não se está abrindo ou fechando o dia, está se perdendo calorias quando todos ao redor concentram-se em ganhá-las, os trajes esportivos são o oposto das calças e camisas sociais que se escondem atrás das buzinas nervosas com semáforos.

E é exatamente por esses motivos que correr ao meio dia faz tão bem.

Quebrar as mais sólidas rotinas, afinal, parece gerar uma vitalidade poderosa, fruto parte de um certo constrangimento por se estar tão deslocado e parte da alegria pelo exato mesmo motivo.

Deveria fazer isso mais vezes. 

  

Inundação

Acho que nunca, em nenhum outro momento, tomei tanta chuva quanto agora à noite. 

Quando saí para correr, já nas primeiras horas da noite, o céu até parecia claro. Um friozinho leve, quase imperceptível, aliviava os passos e embalava a corrida. O parque estava vazio, o que dava uma sensação de liberdade até maior – além de impregnar o horário de rush de uma sexta com um tom estranho, quase exótico. 

Quando terminei a primeira volta, uma ou outra gota pontuou o chão. De leve. Finas. Separadas por metros. 

Continuei para a segunda volta – queria fechar 15K hoje. 

Na metade da segunda volta, a água decidiu desabar. 

Relâmpagos iluminaram o céu. 

Trovões simularam fogos de artifício dignos de finais de Copa do Mundo. 

Pingos grossos pareciam capazes de furar o asfalto, raivosos, estressados. Em um determinado momento, parecia que os Deuses haviam despejado seus baldes sobre o Ibirapuera. 

Apertei o passo, agora preocupado com a capacidade da braçadeira de manter seco o celular. Pelas ruas, puro caos: rios margeavam as ruas, sacos de lixo atravessavam bueiros, carros buscavam escapar de enchentes. Na Estados Unidos, cruzei de um lado a outro saltando obstáculos como se estivesse em uma corrida de aventura. 

Na Bela Cintra, a força das águas descendo a ladeira quase me derrubou uma, duas, três vezes. 

Estávamos inundados: a cidade e eu. Na verdade, era tanta água que seria difícil nos distinguir: éramos um só morro de massa disforme no caminho das cachoeiras urbanas. 

Mas fui, me movendo como podia. Com cautela para evitar passos em falso, caindo em buracos camuflados, mas ainda assim com a pressa de quem quer terminar logo. 

Depois de alguns minutos, terminei. 

Entrei no prédio mais molhado do que se tivesse morrido afogado. Olhei para o relógio: meta cumprida. 

Olhei para o celular: funcionando. 

Respirei fundo. 

Encerrei o dia.