A incrível capacidade de recuperação do corpo humano

Para mim, pelo menos, foi surpreendente. Não sou corredor de elite, não acumulo 200kms semanais e nem somo uma ultra por semana. 

Por outro lado, é bem verdade, estudo o meu próprio corpo com o zêlo de um vestibulando neurótico: leio tudo sobre qualquer minúsculo sintoma, faço autoexames cuidadosos a cada instante, instintivamente, e tomo um cuidado extremo com biomecânica e nutrição.

Tudo isso deve ter contribuído.

Mas o fato é que desde ontem, apenas um dia depois de correr quase 90K em pouco mais de 13 horas pelas montanhas mineiras, estou me sentindo novo. 

Nada de mancar, nada de dores musculares, nada de articulações pesadas. Nada de inchaços, nada de dores de cabeça, nada nem de uma febrinha leve que costumava me acompanhar após provas mais duras. 

Nada.

Quando terminei os 56km da Two Oceans, em 2013, passei dias me locomovendo como um babuíno bêbado. De lá para cá, no entanto, esse tempo de recuperação foi diminuindo progressivamente: Comrades, Douro Ultra Trail, 50K da Copa Paulista de Montanha. 

Mas nada se assemelhou a esta Ultra Estrada Real.

Com o perdão de parecer arrogante, estou impressionado com o meu próprio corpo. E feliz – muito feliz com isso.

Agora, afinal, começo a intensificar o treinamento para a Comrades 2015, no final de maio – e é sempre bom dar a largada com um moral elevado.

Dane-se a planilha vazia: acho que darei uma trotadinha leve no parque hoje à noite.

  

Pura felicidade

Sempre parti do princípio de que viemos ao mundo com o único propósito de experimentá-lo, de colecionar o máximo possível de sensações no mínimo possível de tempo. Afinal, se há uma verdade incontestável, é que todos acabaremos da mesma maneira que começamos: como poeira cósmica.

Sob essa ótica, a nossa existência inteira tem pouca utilidade prática, pouca relevância perante um universo que já existia antes de nós e que existirá por muito tempo depois que o nosso minúsculo planeta deixar de cumprir o seu papel de “grão de areia cósmico”.

E há um lado incrivelmente libertador quando encaramos a vida assim: podemos viver segundo o pensamento de que ganhamos de presente décadas e mais décadas de raciocínio lógico com o único propósito de nos fazer aproveitar cada instante.

Delícia, não? 

Correr ultras certamente ajuda a proporcionar situações diferentes, intensas, para se colecionar novas experiências. Permite viagens para lugares exóticos, tempo para si mesmo e escapes constantes de cotidianos com os quais, afinal, temos que lidar para ganhar a vida e as oportunidades por ela remuneradas.

E, ao colecionar experiências, acabamos ruminando-as em cada passada de corridas mais longas, em cada momento de solidão, em cada gota de suor derramada sobre trilhas ou asfalto. 

Em duas semanas correrei pelas mesmas estradas e ruas que testemunharam rios de ouro e diamante fluirem soltos das montanhas mineiras até outros continentes.

Em dois meses voltarei a um dos lugares que mais amo no mundo, a África, para fortalecer o caldo de endorfina coletiva junto a milhares de pessoas em uma travessia historicamente épica.

E, entre uma data e outra, há quilômetros e mais quilômetros de cultivo de felicidade.

A vida é inquestionavelmente maravilhosa.

  

Checkpoint: Em plena adaptação à LCHF

De toda a semana, eu diria que o mais significativo foi, sem dúvidas, os sintomas de adaptação à “Low Carb, High Fat” (LCHF). De acordo com muitos artigos e relatos que li, há uma fase mais aguda de queda de performance quando o corpo ainda está aprendendo a lidar com o uso de gordura (ao invés de carboidrato) como fonte primária de energia.

Apesar da intensidade de treinos que tive nos últimos meses, nada mais explicaria o resultados dos últimos dias. Hoje, por exemplo, saí para 1h de corrida apenas levemente abaixo dos 6min/km e, já antes da metade, comecei a sentir uma fadiga forte nas pernas. O curioso é que não tive nada nem remotamente semelhante a fome ou àquela sensação de “falta de combustível”. O tanque estava cheio – ele apenas não respondia direito.

Ainda bem que existe a Internet: poucos recursos permitiram uma troca de experiências com outras pessoas ao ponto de nos fazer entender melhor sintomas como estes, algo que, em outros casos, me deixaria em pânico dada a proximidade da Ultra Estrada Real.

Falando nela, há apenas 2 semanas de preparo final. É difícil prever se estarei ou não plenamente adaptado até lá e, embora soubesse desse risco antes de mudar a dieta, sigo confiante de que tudo dará certo. Pela minha ótica, afinal, basta persistir mantendo o ritmo planejado de treino, garantindo uma ingestão realmente baixa de carboidratos (algo entre 30g e 50g/ dia) e interpretando as coisas mais estranhas como adaptação.

Do ponto de vista de gráfico de treino, o meu começa a parecer uma piada quando comparado ao do ano passado. Mas tudo bem: ainda é cedo para arriscar qualquer palpite sobre ele considerando que a prova alfa mesmo, a Comrades, está ainda a mais de 2 meses de distância.

Pelo menos o pace médio voltou a um nível mais desejável.

Sigamos treinando.

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Checkpoint: Exagero, mas com uma excelente desculpa

Sim: essa semana era apenas para retomar, de leve, o aumento de volume mantendo a velocidade. Era para preservar o corpo, deixá-lo em um estado melhor que o que estava há poucas semanas.

Mas aí eu vim pro Rio.

Impossível chegar em uma cidade incrível como essa, com paisagens deslumbrantes, contando ainda com um guia Unogwaja e não exagerar.

Pois é: exagerei. No longão de ontem, que era para ser de 3 horas no plano, beirei as 4 com 1.500 metros de altimetria. Acordei, claro, cansado. Fui para um regenerativo na Lagoa, perto de onde estou e que deveria ser de 30 minutos, e acabei fazendo 50 a um ritmo bem maior que o planejado.

Fazer o que? Pregar vistas inesquecíveis na memória é um dos principais motivos pelos quais corremos. Assim sendo, não tenho dúvidas de que fui além do que deveria – mas conto com o acúmulo extra em motivação para compensar a fadiga.

Enquanto isso, os gráficos me punem: o comparativo com o treino de Comrades do ano passado, abaixo, já mostra perda de ritmo:

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A planilha com a evolução desse ano, no entanto, mostra um crescimento bem vindo nos indicadores mais importantes:

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Bom: a UER vem em menos de 20 dias. Agora preciso me cuidar mais do que nunca para estar preparado.

Enquanto isso, aproveitarei o restante do dia para me embebedar nas lembranças que levarei dessa cidade de volta para casa.

Checkpoint: Reset total

Semana de recomeço: queda brusca no volume, diminuição na gana por velocidade e, ainda assim, articulações duras e cansaço correndo pelo corpo.

Não dá para dizer que foi uma semana fácil, motivadora – mas, assim como em dias de prova, é preciso estar sempre preparado para tudo. E, se é verdade que houve um erro de cálculo no treinamento que me fez atingir o pico cedo demais, é também verdade que há tempo para remediar.

Tenho pouco menos de um mês para a Ultra Estrada Real e quase 3 para a Comrades.

O foco total agora está em crescer o volume aos poucos, manter o pace médio próximo ao que está hoje (para evitar novos exageros) e recuperar a motivação que acabou vazando com os tempos difíceis.

Um passo de cada vez: e essa semana foi apenas o primeiro.

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Checkpoint: o ultra longão

Dia de descanso.

Acordei com as articulações tesas, inchadas e com as pernas bastante doloridas. Até aí, nada de inesperado – mesmo tendo sido um treino, a distância percorrida ontem foi minimamente respeitável.

Sim: está claro para mim que preciso fazer ajustes no treino e me recuperar mais antes da UER, na Páscoa. Tudo bem: o sentido de um longão no pico é justamente testar o corpo, o que significa que a missão foi cumprida a tempo.

Mas há um outro lado para o dia de ontem que vai além da constatação dos problemas: a sensação única, especialmente gratificante, de se fazer uma ultra. Lá pela quinta hora, quando o corpo subitamente se recuperou e “atravessou” o “muro” captando uma segunda onda de energia, tudo passou a fazer sentido.

Tudo. Em segundos, toda a dor é ignorada e apenas o sentimento de que o corpo é muito mais resiliente do que se pensa fica pulsando pelas veias inchadas. Vem uma espécie de sensação de imortalidade endorfinada, de superação, de quebra de limites, que eleva toda a alma para uma espécie diferente de patamar.

Quem curte ultra entende bem isso. Não importa o quão ruim tenha sido a jornada pelos quilômetros: sempre há um determinado ponto em que se sublima todas as dificuldades e que se entende os motivos que impulsionam cada um dos tantos passos dados. E nem precisa de corrida oficial para isso: basta uma rua ou trilha e muita distância.

É simples assim. E é por isso que amo esse esporte.

Bom… agora é hora de sacudir a poeira, descansar as articulações e iniciar uma fase de preparo diferente justamente pela falta de intensidade. Que venha a UER. E a Comrades, claro.

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Ultra longão para testar os sistemas

Hoje já acordei com o “mode ultra” ligado: por volta das 7:00, sairia para o longão mais importante do ciclo de treino antes da largada em Santa Bárbara.

No total, o percurso incluía 8km de casa até a USP por um caminho mais longo, 4 voltas na USP e o retorno até minha casa por uma rota de, aproximadamente, 5km. Somando tudo, chegaria a 45km.

E, de fato, cheguei – mas a avaliação deste longo foi bem pior do que eu imaginava.

Já na saída, o corpo ainda cansado do esforço acumulado das últimas semanas avisou que nada seria tão simples. Segui com o plano: 30 minutos de corrida a um pace conservador para 1 minuto de caminhada, economizando energias e simulando uma estratégia semelhante à que devo usar em Comrades.

Lá pelo km 30, no entanto, o cansaço bateu forte. Cedo demais, o que já me deixou tenso.

As pausas para caminhada se tornaram mais frequentes, as subidas da Rua do Matão mais lentas e os paces, de forma geral, ainda mais conservadores. Somando as dores ao tédio de um percurso feito de 4 voltas idênticas sob um calor que já batia os 31 graus, o sofrimento da musculatura como um todo foi grande.

Ainda assim, claro, cumpri o plano: fechei as voltas e tomei o rumo de casa, parando apenas para tomar uma Coca e recarregar a dose de açúcar.

Curiosamente, o tempo fechou e uma tempestade começou a desabar sobre a cidade, aliviando a temperatura. Ponto importante: aqui, o percurso parecia magicamente outro: mais frio, chuvoso e sem repetir trechos uma vez que estava a uma reta de casa. Resultado? Aquele lugar escuro em que estava, difícil, dolorido e tenso, par dizer o mínimo, lentamente foi desaparecendo. Foi como se tivesse atravessado o “muro” e, na altura do km 40, me transformado em outra pessoa.

Fechei os 5K restantes em um estado muito melhor, quase sem pausa para caminhada, chegando em um estado muito melhor do que estava a apenas poucos quilômetros antes.

Ainda assim, o tempo foi alarmantemente ruim, mesmo para um treino programado para ser conservador: 5h30, aproximadamente.

Mas longos de teste servem para isso: fazer um assessment geral e detectar pontos de ajuste no treino antes da largada. E é nisso que devo me dedicar agora, nos próximos dias.

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Ritmo, ritmo, ritmo

1h30 de treino antes do sol raiar. Meta: manter um ritmo forte, mesclando pista e trilha do Ibirapuera e buscando ficar na casa dos 5’30” baixos (incluindo aí 30 minutos de tempo).

Essa nova fase do treino, entrando cautelosamente no pico tendo a UER e a Comrades como meta, está totalmente concentrada em um equilíbrio perfeito de velocidade com volume. Nessa semana, por exemplo, terei mais um treino como o de hoje, um de 1 hora com intervalados e, no sábado, 5 horas de rodagem em um ritmo mais calmo, porém igualmente planejado e equilibrado.

Não vou mentir: dói. Nessa mesma fase do ano passado, me peguei abrindo mão de velocidade e privilegiando a distância. Não é isso que está sendo feito no planejamento atual – e será interessante constatar as variações nos resultados.

Mas voltando ao ponto: o dia de hoje foi concluído com 17km, levando a um pace de 5’32” (incluindo as pausas em semáforos e cruzamentos). Pela análise de GAP do Strava, que desconsidera os trechos em que fico parado, o pace foi a 5’27” – dentro da meta.

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O gráfico de ritmo mostra tudo exatamente como foi: um começo de aquecimento rápido, picos de velocidade quando fui na pista (entre os km 4 e 8), diminuição leve na trilha (ainda meio enlameada pelas chuvas de ontem, entre os km 8 e 13) e uma volta com pausas maiores pelo movimento mais intenso das ruas no caminho do Ibira até a minha casa.

Pela distribuição de pace, abaixo, a maior parte do esforço ficou dividido em endurance e acima (tempo, threshold, VO2Max e anaeróbico):

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Perfeito para a fase.

Agora é equilibrar o cansaço, balancear com os ajustes na alimentação que estou fazendo e ganhar força para enfrentar bem as próximas ultras.

Em tempo: sei que os últimos posts estão absolutamente nerds, com um foco excessivo e bem “mala” em estatísticas que, embora importantes para mim, são bem medianas para corredores mais intensos. Ainda assim, o propósito inteiro desse blog é justamente registrar o que se passa na cabeça de um corredor enquanto ele corre, certo? E, nesses últimos dias, a palavra ritmo tem praticamente martelado na minha mente sem dó. Melhor dar ouvidos :-)

Checkpoint: Semana das meias

Não dá para dizer que foi uma semana fácil. Dos 5 treinos, 4 foram meias quebradas e 2 sequências cada. Para deixar a brincadeira mais intensa, as duas primeiras foram percorridas no calor da capital baiana e as duas últimas com pesos extras na mochila de hidratação, já em Sampa.

Mas isso não é uma reclamação: é o oposto. Dá para perceber que o ritmo está, aos poucos, realmente começando a mudar, invertendo a tendência de desaceleração que vinha se impondo às minhas performances de maneira geral.

Na comparação com a Comrades do ano passado, tenho adicionado altimetria, dificuldades e mantido um pace médio apenas levemente mais lento.

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O ponto positivo é que a diferença mínima de pace vem acompanhada de um volume de treino maior, o que significa uma resistência mais compatível com as ultras.

Ainda há, no entanto, um longo caminho a ser percorrido até chegar no ponto que desejo. O importante, claro, é persistir.

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A Teoria das Crises e Platôs

Depois de duas meias consecutivas no escaldante sol baiano, hoje foi dia de uma meia horinha regenerativa no Parque do Ibirapuera, já de volta ao ameno clima do fim de tarde paulistano. Resultado: ao invés de lento, cruzei o Parque na casa dos 4’50″/km praticamente sem esforço.

E foi aí que veio uma teoria totalmente empírica, sem nenhum embasamento científico ou estatístico que acabei cunhando na volta para a casa: a de que evoluímos em momentos de crise até alcançarmos novos platôs de performance.

Explico:

Quando terminei a Two Oceans, lá em 2013, fiz a Meia da Corpore ainda com dores nas pernas. Bati meu recorde pessoal para a distância.

Depois da Comrades, consegui subir mais a velocidade média e, quando cheguei na próxima ultra, a DUT, estava tinindo.

A DUT, no entanto, era pura trilha e a velocidade acabou sendo bem menos relevante. Quando a terminei, tinha o corpo praticamente perfeito para resistir por horas e horas – mas a velocidade caiu.

A Maratona de SP, no final de 2014, me colocou sob circunstâncias péssimas, com o calor e o percurso monótono destacando a lentidão que herdara das montanhas. Isso mexeu comigo e me fez ajustar o ritmo – sem perceber. Comecei a performar mais.

Em todos os momentos da minha vida de corredor, passar por provações (ou crises) acabou sendo fundamental para me fazer melhorar instintivamente na área que mais estivesse objetivando, fosse resistência ou velocidade.

Minha última meia em Salvador, ontem, foi dura, terminando quase ao meio dia e em um percurso repleto de ladeiras. Quando saí para correr hoje, estava cansado ao ponto de quase abrir mão da rua.

Não abri.

E bati meu recorde pessoal para o percurso sem, repito, precisar me matar. Foi até fácil, eu acrescentaria.

Conclusão? Sair da zona de conforto por alguns treinos chacoalha o corpo e a mente e os eleva a novos patamares de performance geral. Quer crescer? Primeiro, se estaboque em um treino ou uma prova além do que estiver preparado e deixe o próprio corpo se resolver sozinho depois disso.

Essa, pelo menos, virou a minha teoria.

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