Correndo pela Revolução de 32

Nunca havia me dado conta que, hoje, sou vizinho de muitos dos livros de história que lia quando morava em Salvador. Faz relativamente pouco tempo que acordei para isso, em grande parte embalado por todo um mar de livros que tenho lido sobre São Paulo. E quer forma melhor de vivenciar a história de uma cidade do que correndo-a? 

Hoje, portanto, começou na década de 30. 

Ainda estava embalado pelo clima do tenentismo, pela revolta de 24 que transformou a cidade em escombros e fez dos parques que hoje parecem tão inocentes trincheiras encharcadas de sangue. O mesmo tenentismo, 6 anos depois, havia deposto Washington Luís e impedido a posse de Júlio Prestes, colocando Getúlio Vargas no Catete. E, dois anos depois, os paulistas que sempre tiveram pavio curto, cansaram de esperar por uma constituição tão prometida quanto inexistente.

Essa sucessão de eventos foi comigo subindo a Bela Cintra até o centro, mais precisamente até a Praça do Patriarca. Aquele local era o principal centro de protestos da cidade – e foi dali que a população começou a se revoltar contra a ditadura de Vargas. Hoje, um sábado de manhã após a sexta-feira santa, ela estava vazia; há pouco mais de 80 anos, no entanto, ela abrigava a maior manifestação que a cidade já vira. Parei na Praça e olhei ao redor: os mendigos e catadores de lixo que ali habitavam e que mais pareciam soldados caídos na batalha de tão desesperançosos, ignoravam o passado da metrópole. Claro: hoje, eles estão ocupados demais batalhando pela sobrevivência, pelo presente. 

  
Mas não era no hoje que eu estava: estava em 1932. Em 23 de maio de 1932, para ser mais preciso.

De lá, rumei com os revoltosos até a esquina da Praça da República com a Barão de Itapetitinga. Hoje, um prédio meio abandonado que abriga, em seu andar térreo, uma agência bancária, parece camuflado pela curta memória histórica que o brasileiro cisma em ter. No passado, ali era a sede da Legião Revolucionária, um dos bastiões da segurança pública. No caminho até lá, os revoltosos saquearam lojas de armas e começaram a se insurgir de maneira mais perigosa, intensa. 

  
Assustados, os combatentes da Legião revidaram com tiros no que foi a primeira das grandes batalhas da cidade. Quatro das cinco primeiras vítimas foram estudantes que, com suas iniciais – MMDC – se transformaram em mártires e símbolos da Revolução que começava naquele dia. 

A partir de então – e por 90 longos dias – o estado de São Paulo estava em guerra. Da Praça da República segui para a Barão do Rio Branco desviando de balas e de porretes. Outro símbolo máximo de uma era que se foi fica por lá, igualmente esquecido: o Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo do estado, onde Pedro de Toledo foi aclamado governador pelo povo. 

  
Deu para sentir a aclamação, o fervor nas ruas, os gritos. 

De lá daquele palácio, boa parte das estratégias militares foram planejadas, calculadas, medidas. De lá, muitos destinos foram traçados.

O Palácio passou por uma reforma em sua parte externa e, de fato, está belíssimo – mas a falta de recursos, velho conhecido da nossa história, paralisou o projeto e essa jóia paulistana permanece fechada ao público. 

Muito sangue ainda foi derramado entre julho e outubro de 32, mas já começava ali a me despedir da revolução. 

Enquanto ela era esmagada pelas tropas legalistas e seu objetivo político de impor uma constituição paradoxalmente alcançado, a cidade seguia o seu ritmo de motor do país inteiro. Fui conferir o “motor” na região da Barra Funda, incluindo uma passada na Chácara do Carvalho, lar do mito Antônio Prado, que saiu de mestre de escravos a barão do café na república velha, que trouxe a indústria para São Paulo, que trouxe os trens, os bondes e a modernidade como um todo. 

De lá fui para a então “cidade cotidiana”, às margens dos trilhos da Barra Funda onde hoje novos bairros se erguem. As chaminés das fábricas, no entanto, permanecem como testemunhas perfeitas de tantas eras que passaram pelos seus tijolos. Isso inclui, claro, a chegada de todo um mar de italianos que chegou a ser maioria entre a população paulista, inclui os palcos das tantas lutas de classe, inclui a vinda, anos depois, dos imigrantes nordestinos, inclui a nova São Paulo. 

   
 Mas esses tempos são novos demais para essa corrida. Deixei a Barra Funda pela Sumaré, já me integrando ao século XXI, e voltei à Bela Cintra já tomada de prédios e asfalto para encerrar a corrida. 

No total, foram 26km rodados em pouco menos de 3 horas. 

3 horas em que praticamente desapareci do meu Tempo e mergulhei em revoltas, revoluções, lutas, trincheiras, bombardeios e gritos de ordem. 

Se correr, por si só, já é inspirador, cruzar toda uma era consegue ser mágico.

  
 

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