Comer e correr

Nunca considerei meus hábitos alimentares como dentro do padrão ou de qualquer suposta normalidade.

Vivo com duas refeições diárias – café da manhã e jantar -, sou absolutamente carnívoro, psicoticamente tarado por chocolate e praticamente sem o hábito de comer qualquer coisa verde. Um pesadelo para qualquer nutricionista – motivo pelo qual a tentativa de consulta que fiz, há bastante tempo, onde me foi “imposta” uma dieta radicalmente oposta ao que estava habituado, foi tão breve quanto única.

Em minha defesa, eu não bebo. Confesso que não por opção: uma cirurgia que fiz no fígado há 8 anos, quando pesava mais de 100kg e era tão sedentário quando uma mesa, me presenteou com essa impossibilidade.

Também em minha defesa: esse esquisito hábito alimentar mais ajuda do que atrapalha quando se curte correr ultras. Cheguei a comentar isso no post de ontem: habituar o organismo a comer de 3 em 3 horas é uma receita de desastre para qualquer um que deseje passar 8, 15, 24 horas nas trilhas. Treinamento e especificidade, afinal, são tudo.

E quer saber? Os exames que faço rotineiramente, uma vez a cada semestre, mostram que tudo está perfeito aqui dentro.

Sei, no entanto, que preciso fazer alguns ajustes. Chocolate demais atrapalha, obviamente. Cortar esse tipo de açúcar mais industrializado tem sido uma das minhas metas para este ano – mesmo porque, tenho plena consciência, poucos se lambujam de chocolate com tanto frenesi quanto eu.

Balancear melhor as refeições também precisa ser feito. Não estou falando de comer mais vezes – sou absolutamente contra isso. Mas estou falando de comer um pouco melhor, principalmente à noite. Quando chego em casa, especialmente depois de treinos noturnos, me entrego ao(s) prato(s) quase irracionalmente. Exercício dá fome, afinal. E exercício em jejum, quando termina, mexe com a cabeça mais do que o normal.

E isso, de fato, tem me trazido alguns problemas. Essa súbita fartura concentrada em 20 ou 30 minutos tem me feito dormir várias noites com a sensação de estômago dilatado – gerando também uma manhã esquisita, uma sensação prolongada de mal estar e problemas nos treinos. São sinais do corpo: é hora de mudar.

E, de duas semanas para cá, tenho feito ajustes. Se não dá para controlar o impulso de comer, então dá para começar com uma salada e trocar a sobremesa de chocolate por uma maçã. Coisas simples, práticas e de efeito imediato.

Resultados? As dores na região da barriga sumiram de vez e mesmo os quilos que começava a ganhar já ficaram para trás.

Estou longe de praticar qualquer tipo de radicalismo nutricional – mas esses últimos dias me ensinaram claramente que ouvir o corpo vai além de saber diminuir o ritmo dos treinos quando os músculos começam a ficar esquisitos. Ouvir o corpo significa também usar o velho bom senso para regrar o que se come com base em uma intuição quase óbvia, analisando continuamente coisas como histórico, sensações gerais de bem estar e evoluções de performance. Tudo, afinal, sempre tende a ser mais simples do que costumamos julgar.

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O silêncio das primeiras horas

Há algo de melhor, de mais intenso, em correr antes do sol raiar.

Acordar já é algo diferente, com o despertador interrompendo a escuridão absoluta e iniciando aquela batalha entre os impulsos de levantar e de permanecer deitado. Mas é a única batalha existente nessas primeiras horas.

Uma vez de pé, o silêncio volta a reinar.

Na rua, os poucos carros que passam parecem cortar delicadamente a cena absolutamente congelada. Os primeiros passos dão a impressão de estarmos correndo em uma pintura, com tudo cuidadosamente colocado em seus lugares.

Só a respiração parece se mover, puxando consigo aqueles primeiros pensamentos do dia. Fatos do ontem, decisões do hoje e hipóteses do amanhã vão se misturando em um caldo único, espesso, guiados por batimentos cardíacos em aceleração.

Decisões imediatas de menor peso – como achar um portão de acesso ao parque aberto a essa hora – começam a fixar o dia em um presente menos complicado e mais corriqueiro, simples. Até que tudo parece corriqueiro, incluindo pensamentos sobre os pensamentos dos outros poucos corredores que desenham essas primeiras horas escuras do dia, a leve irritação de não achar água nos bebedouros secos da cidade seca, da decisão sobre fazer ou não um cotovelo no percurso e prolongar, em alguns metros, a rota do dia.

Então, depois da densidade e da leveza, vem uma espécie de nada. Puxado por doses mais generosas de endorfina, há um buraco cerebral que sempre aparece nos momentos em que o piloto automático é ligado durante uma corrida. Nunca consigo me lembrar do que passou em minha mente nesses instantes de nada – mas sempre fico com uma espécie de saudade dele no minuto em que o primeiro pensamento qualquer interrompe a paz.

Hoje, naquelas horas escuras do Ibirapuera, o nada foi tão forte que me roubou da memória trechos generosos do percurso. Para falar a verdade, ele durou até a subida da 9 de Julho, quando costumo dar um último tiro na volta para casa.

No total, 11km foram finalizados ainda no escuro, com apenas um ou outro raio de sol mais ansioso querendo aparecer.

O silêncio, no entanto, permaneceu por mais alguns instantes: todos em casa ainda dormiam quando entrei. Fiz café, preparei as roupas da escola da minha filha, tomei banho, me arrumei.

Não dá para dizer que consegui chegar no nada de novo – mas deu para respirar mais fundo, liberando a energia acumulada nas ruas. Deu para descansar do descanso ativo, por assim dizer.

E começar melhor confusão natural de um dia de trabalho na capital paulista.

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