Gravando a última impressão

Mar e dunas ontem, cidade hoje. Por algum motivo, há qualquer coisa que sempre me encantou em pequenas vilas que parecem congeladas no tempo.

Fora algumas anomalias urbanas superpopuladas, repletas de violência e miséria pútrida, o interior nordestino é essenclamente cheio delas. 

A região do pontal não é exceção.

Saí hoje tão cedo que a lua cheia ainda reinava absoluta no céu que apenas começava a se riscar com os primeiros tons de azul claro. Era sábado, dia mais parado que os já calmíssimos habituais, mas algum movimento se ensaiava. 

Mulheres de vestido de renda varriam areia para longe de suas varandas, homens olhavam o sol que sempre viam com um ar de tedioso espanto, crianças e cachorros faziam os primeiros barulhos do dia. 

A pobreza da região era óbvia – mas era também resignada, calma, quase que conivente com sua própria falta de perspectiva. 

Era uma pobreza de tudo: dinheiro, conforto, futuro, vocabulário. Curiosamente, ela se equilibrava com o outro extremo: a abundância de paisagens, de dunas, de oceano, de azul do céu e de vida que cismava em proliferar naquele naco abandonado do mundo.

No caminho, estradas se abriam em frente a igrejas de todas as faces cristãs, ruelas se esgueiravam por entre céu e terra, carnaúbas se erguiam do mato, brisas teimosas quebravam, ainda que por instantes, o já insuportável calor nordestino.

Olhei para tudo aquilo diversas vezes: para os rostos castigados mas leves dos locais, para as casas mal pintadas, para as pracinhas bucólicas e para toda a natureza que se sobressaía superlativa. 

Gravei cada milímetro na mente.

Era essa a última impressão que queria levar de volta para São Paulo amanhã.

   
   

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De costa a costa no Pontal

Despedidas tem que ser feitas em alto estilo, claro. Em grande parte, os últimos quilômetros corridos serão sempre os mais frescos na memória, quer por motivos óbvios quer por terem sido corridos em meio a um turbilhão de pensamentos ecoando entre os ouvidos, todos mesclando saudades com momentos de altos e baixos passados nas trilhas.

Meu último dia não foi hoje – será amanhã. Mas, hoje, decidi fazer 21K rodando pelos dois lados do Pontal.

Primeiro, saí ainda cedo e com maré começando a baixar pelo trecho oeste. Repeti o caminho de ante-ontem, absolutamente deserto e na companhia apenas de mar e dunas. Decidi variar e, por pura diversão, troquei trechos de areia dura por mais e mais dunas, escalando-as e correndo para baixo como se tivesse 10 anos de idade. Fiz isso uma, duas, três, várias vezes. Até que os Vibrams, que me acompanharam em toda a viagem, ficassem tão cheios de areia que seria necessário parar para recalçá-los.

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Com o sol já ardendo, busquei refúgio em uma das casinhas de palha feitas para abrigar jangadas. Foi uma boa ideia: abrigado por uma sombra providencial e banhado por uma brisa divina, pude erguer os olhos e enxergar, à minha frente, um mar de um azul vibrante brilhando sob o céu. Naquele pedaço de segundo tive a certeza de que estava imerso em uma daquelas cenas que o cérebro escolhe jamais esquecer.

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Com um suspiro, limpei o tênis e segui. A maré já estava mais baixa, o que facilitou a corrida e me fez desistir de cortar por um trecho fora da praia para evitar uma região mais cheia de pedras. Fui por elas mesmo, me equilibrando e alternando saltos como se estivesse dançando sobre o acaso.

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Já na outra ponta, prossegui, passando o hotel e seguindo no sentido leste.

A praia, agora com maré bem baixa, parecia outra: o mar brilhava diferente, o cenário parecia mais árido e campos com um toque de sertão se abriam a cada morro. Em um determinado ponto precisei sair das areias e subir uma pequena falésia para atravessar uma zona mais “impassável”. De cima, o velho farol vermelho pontuava um horizonte aberto como poucos, feito de vegetação rasteira, de cactus  e de uma eventual duna.

Fui até o farol cortando o mato e enfrentando a areia fofa. O solo se alternava: virava terra vermelha queimada, depois branca rochosa, depois mato, depois duna. Todos os solos do mundo pareciam conviver ali – ao menos até a beira do pequeno forte que abrigava a luz.

Nele, uma escada interrompida parecia um dia ter servido ao propósito de levar pessoas ao seu interior em algum momento do passado. Pulei algumas pedras e, usando as mãos, consegui chegar ao primeiro degrau. Subi até o topo apenas para sentar e tomar o último gole de água apreciando mais uma vista memorável. Que incrível essa região ainda praticamente intocada pela civilização, ainda deserta, ainda pura sob tantos aspectos! Que incrível todo esse estado do Ceará, certamente um dos mais belos do Brasil!

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Olhei para o Garmin: estava na hora de retornar. Fiz o caminho de volta à base mas, em vez de seguir pela praia, decidi ir por dentro para viver um pouco mais daquela paisagem sertaneja, quente, forte.

A ideia foi perfeita: de repente, me deparei com uma estrada de areia inteiramente margeada por cactus gigantes! A impressão deixada foi tamanha que tive que parar e andar um pouco apenas para sorver aquela cena com a atenção que ela merecia: nem nos meus sonhos imaginei me deparar com algo assim.

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Dali em diante foi uma reta só.

Cheguei de volta ao hotel no segundo que o relógio bateu 21km: perfeito. Ainda eram 8:30 da manhã e o dia inteiro se estendia como promessa.