De costa a costa no Pontal

Despedidas tem que ser feitas em alto estilo, claro. Em grande parte, os últimos quilômetros corridos serão sempre os mais frescos na memória, quer por motivos óbvios quer por terem sido corridos em meio a um turbilhão de pensamentos ecoando entre os ouvidos, todos mesclando saudades com momentos de altos e baixos passados nas trilhas.

Meu último dia não foi hoje – será amanhã. Mas, hoje, decidi fazer 21K rodando pelos dois lados do Pontal.

Primeiro, saí ainda cedo e com maré começando a baixar pelo trecho oeste. Repeti o caminho de ante-ontem, absolutamente deserto e na companhia apenas de mar e dunas. Decidi variar e, por pura diversão, troquei trechos de areia dura por mais e mais dunas, escalando-as e correndo para baixo como se tivesse 10 anos de idade. Fiz isso uma, duas, três, várias vezes. Até que os Vibrams, que me acompanharam em toda a viagem, ficassem tão cheios de areia que seria necessário parar para recalçá-los.

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Com o sol já ardendo, busquei refúgio em uma das casinhas de palha feitas para abrigar jangadas. Foi uma boa ideia: abrigado por uma sombra providencial e banhado por uma brisa divina, pude erguer os olhos e enxergar, à minha frente, um mar de um azul vibrante brilhando sob o céu. Naquele pedaço de segundo tive a certeza de que estava imerso em uma daquelas cenas que o cérebro escolhe jamais esquecer.

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Com um suspiro, limpei o tênis e segui. A maré já estava mais baixa, o que facilitou a corrida e me fez desistir de cortar por um trecho fora da praia para evitar uma região mais cheia de pedras. Fui por elas mesmo, me equilibrando e alternando saltos como se estivesse dançando sobre o acaso.

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Já na outra ponta, prossegui, passando o hotel e seguindo no sentido leste.

A praia, agora com maré bem baixa, parecia outra: o mar brilhava diferente, o cenário parecia mais árido e campos com um toque de sertão se abriam a cada morro. Em um determinado ponto precisei sair das areias e subir uma pequena falésia para atravessar uma zona mais “impassável”. De cima, o velho farol vermelho pontuava um horizonte aberto como poucos, feito de vegetação rasteira, de cactus  e de uma eventual duna.

Fui até o farol cortando o mato e enfrentando a areia fofa. O solo se alternava: virava terra vermelha queimada, depois branca rochosa, depois mato, depois duna. Todos os solos do mundo pareciam conviver ali – ao menos até a beira do pequeno forte que abrigava a luz.

Nele, uma escada interrompida parecia um dia ter servido ao propósito de levar pessoas ao seu interior em algum momento do passado. Pulei algumas pedras e, usando as mãos, consegui chegar ao primeiro degrau. Subi até o topo apenas para sentar e tomar o último gole de água apreciando mais uma vista memorável. Que incrível essa região ainda praticamente intocada pela civilização, ainda deserta, ainda pura sob tantos aspectos! Que incrível todo esse estado do Ceará, certamente um dos mais belos do Brasil!

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Olhei para o Garmin: estava na hora de retornar. Fiz o caminho de volta à base mas, em vez de seguir pela praia, decidi ir por dentro para viver um pouco mais daquela paisagem sertaneja, quente, forte.

A ideia foi perfeita: de repente, me deparei com uma estrada de areia inteiramente margeada por cactus gigantes! A impressão deixada foi tamanha que tive que parar e andar um pouco apenas para sorver aquela cena com a atenção que ela merecia: nem nos meus sonhos imaginei me deparar com algo assim.

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Dali em diante foi uma reta só.

Cheguei de volta ao hotel no segundo que o relógio bateu 21km: perfeito. Ainda eram 8:30 da manhã e o dia inteiro se estendia como promessa.

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O dia que faz tudo valer a pena

Às vezes, quando viramos uma esquina no meio de uma trilha ou erguemos a cabeça, nos deparamos com paisagens que dificilmente sairão da retina. São essas vezes, infelizmente menos comuns do que se costuma sonhar, que fazem corridas em locais pouco cotidianos valerem a pena.

Ontem foi um desses dias.

Acordei sozinho, sem despertador, por volta das 5:30 da manhã – e já saí do quarto bêbado com o cenário. Uma praia que beirava o infinito se estendia em minha frente, pontilhada apenas por jangadas cearenses espalhadas pelo areal e, lá no fundo, atrás de falésias vermelhas, um conjunto de torres eólicas.

Corri pela praia, que ostentava uma maré baixíssima que fazia o chão parecer um espelho ocre ilustrando o céu inatacavelmente azul. Fui por uns 6, 7km até chegar no Rio Jaguaribe e segui margeando-o. O cenário cedeu, ficando mais parecido com um mangue, e barcos ainda adormecidos pareciam ansiosos para carregar turistas para a outra margem, onde ficava Canoa Quebrada.

Ainda assim, segui até onde consegui: parei apenas quando um cachorro furioso decidiu avançar sobre mim, me fazendo entrar com tudo no rio, o que certamente gerou uma carga de adrenalina eletrizante. Continuei um pouco dentro do rio até sair do seu alcance e voltei para a areia. Estava na hora de mudar de rota.

Entrei à esquerda por uma ladeira invadindo um pequeno povoado, daqueles que mistura pobreza com o ar bucólico que apenas o nordeste guarda. Passei por uma igrejinha típica, de uma vila típica, com pessoas típicas varrendo o chão. Tudo era tão típico que parecia até cenário de novela. Não era.

Fui mais algum trecho por ela até decidir tomar uma trilha de areia fofa que parecia margear o oceano. Sob o calor já escaldante, aquele momento pertencia ao suor e ao ácido láctico que cismava em reclamar.

Pelo menos até que os arbustos subitamente ficaram menores e o horizonte inteiro se abriu.

Se abriu não: se impôs em forma de susto visual, roubando cada gota de concentração para si. Estava rodeado por campos secos, dunas, mar e céu azul, todos pontilhados apenas por um farol distante e grandes pedras vermelhas como o fogo. A paisagem era tão incrível que foi difícil até mesmo entendê-la: entre passos, ficava olhando atentamente a tudo e tentando gravar na memória cada átomo de pura beleza.

Tirei fotos, parei, respirei fundo. Corri de um lado para outro, tentando alcançar vistas mais belas como se fosse possível. E pior: era. A cada morro, uma nova cena se abria, intensa, forte.

Fiquei até aqueles segundos antes do cansaço.

A volta, já pela praia, poderia ter sido pelo asfalto de alguma periferia qualquer: estava com tudo aquilo tão gravado na memória que nada mais, nem o calor ou o sol, nem o mar, nem o cansaço e nem mesmo a perspectiva de repetir o percurso inteiro faria qualquer diferença. Minha retina estava irremediavelmente manchada pela beleza.

Foi uma das corridas mais incríveis da minha vida.