Reconstrução

Uma ultra não termina na linha de chegada. Verdade seja dita, toda uma outra prova de endurance começa a partir daí. 

Primeiro, é necessário acalmar o corpo, deixá-lo entender que ele fez o seu papel e que agora é hora de descansar. Com calma. 

Friso isso porque, por mais que músculos e mente estejam a milhão e em ritmos incessantes, basta cruzar a linha de chegada que eles ficam muito próximos de um estado de colapso. É parar de correr e pronto: pernas ficam duras, musculatura trava, um frio polar arrepia até a espinha e um cansaço bíblico toma conta do corpo. 

A cabeça pesa mais nas horas imediatamente seguintes à chegada. Desidratação e nutrição de guerra fazem-na ressoar mais que o normal, algo que vai passando a cada garfada de um jantar mais caprichado. Ainda assim, é necessária uma noite de sono e todo o dia seguinte para que ela realmente volte ao normal. 

Juntamente com a cabeça, os músculos – claro – doem. Por fases, pedaços, quase que de maneira compartimentalizada. Esse ponto é curioso: todo o corpo pode estar dolorido mas, se a coxa esquerda carregar a dor mais intensa, é nela que a mente se focará. As demais parecerão apenas um leve e distante incômodo. Com a experiência, as dores musculares são as primeiras que passam: em uns dois dias não há mais nem lembrança delas. Pode-se inclusive dar um trote pelo parque para forçar uma reanimação geral que músculo algum será barreira. 

Musculatura, no entanto, não é tudo. Enquanto coxas, panturrilhas, pés e torso ficam bons, o organismo começa a se refazer em seu próprio ritmo. 

Estômago, ainda inconformado com a provação, tenta voltar ao seu normal – algo que levará alguns dias ainda.
Rins e bexiga parecem tentar se reconhecer: o ato de urinar em si carrega alguma dor na medida em que se vai eliminando as toxinas do corpo. Não é uma dor lascinante: é apenas presente e incomoda na medida em que, aos poucos, se vai mais e mais ao banheiro. A cada ida, pequenas mudanças são sentidas: o incômodo vai diminuindo e a coloração muda de laranja escuro para amarelo claro. Dois, três, talvez quatro dias se passam até que tudo volte ao normal.

No total, a recuperação de uma ultra pode levar até uma semana a depender da experiência do corredor e do próprio estilo da prova. Esse ponto é importante: ultras de montanha, com mais ajustes de ritmo em que trocas por caminhadas e corridas são constantes, costumam imprimir danos menores; ultras mais rápidas, onde se corre por quase todo o tempo, são mais severas. 

Severas ou não, todas passam. De lembrança, deixam apenas algumas bolhas nos pés, lembranças fortes e aquela sensação de missão cumprida que costuma vir acompanhada de alguma outra meta. 

E já é hora de começar tudo de novo. 

Definitivamente, entender esse mundo de ultras que tanto amamos não é das tarefas mais fáceis!

  

Ritmo errado

Depois de dois dias de descanso total para me recuperar de algumas estranhas dores pelo corpo, chegou o sábado.

4 horas de treino previstas em um local mais “fácil”, com menos ladeiras e trânsito praticamente inexistente: a USP, meca dos corredores de rua aqui em Sampa.

Saí às 8 em ponto – talvez um pouco tarde dado o calor senegalês que se abateu sobre a cidade neste final de verão.

Talvez, não: com certeza.

Os primeiros quilômetros em direção à Marginal, ainda em um pace relativamente firme no sub-6′, já alertaram para as dificuldades. Clima desérticamente seco, termômetros subindo sem parar e um céu com pouquíssimas núvens guiaram o meu caminho de pouco mais de 8km até a Cidade Universitária.

Lá dentro, acompanhado pelas hordas de corredores e ciclistas que vivem nas ruas da USP, a ideia era dar 3 voltas (também com cerca de 8km cada) e retornar. Ou seja: faria, assim, algo como 40km no longão.

Faria.

Lá pelo quilômetro 15, o abdômen voltou a incomodar mais do que deveria e a cabeça, a pesar com o sol.

Diminuí o ritmo, comecei a intercalar com um pouco de caminhada e, por um tempo, tudo melhorou um pouco.

Foi só encarar o retão próximo à Raia Olímpica, no entanto, que todas as dores voltaram. Correr passou a ser algo menos natural, mais difícil. Desacelerei.

Entrei na trilha, já consciente de que cortaria a terceira volta, para mudar de ares. Trilhas são sempre um bom remédio.

Sob a sombra das suas árvores, melhorei um pouco e encarei a segunda subida do Matão.

Não deu: andei por parte dela. Voltei a correr.

Na descida até o portão voltei a acelerar, fazendo pouco mais de 1km em ritmo de Usain Bolt. Fui bem, estranhamente confortável.

Quando cheguei no plano novamente, troquei de marcha e decidi me encaixar em um pace mais leve e compatível com o estado do corpo.

Quer saber? Funcionou maravilhosamente bem.

Como saí de casa em jejum (algo que sempre faço, aliás), parei em um boteco a uns 5km de casa e tomei uma Coca. Açúcar cairia bem naquele ponto.

De lá em diante, não posso dizer que tive uma corrida perfeita: o estrago, afinal, já havia sido feito.

Mas consegui correr relativamente bem, fechando quase 32km em 3h30.

O longão de hoje não foi exatamente algo incrível – mas me ensinou uma lição importante: ritmo bom é aquele que nos permite chegar no melhor estado possível à nossa meta.

Parece óbvio, claro: mas, no calor dos treinos e na ansiedade de se superar marcos pessoais, isso acaba se perdendo no esquecimento.

Se tivesse sido mais conservador já no início eu certamente não teria quebrado como quebrei no longão. Tudo bem: que a memória do erro sirva de combustível para o próximo.

Mas há, ainda, algo a mais que também não posso ignorar: há algo de errado com o meu estômago, que tem estado em uma espécie de constante estado de dilatação e doendo mais do que deveria. Nutrição, talvez?

Não sei a causa exata – mas certamente é algo que merece ser observado mais de perto nos próximos dias.

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