Devia ter me ouvido

Devia ter prestado atenção a mim mesmo quando, no soar do despertador, decidi ignorá-lo e me refugiar nas cobertas.

Sim, fiz exatamente isso ainda que sem nenhum motivo físico aparente. Estava inteiro, intacto e apenas com uma rusga passageira de sono.

Algumas horas depois, no entanro, estava calçando o tênis e projetando o percurso dos 40K do dia.

A preguiça era mais que ela mesma: era um aviso.

Ignorado, decidiu se vingar.

Saí por um percurso novo, até: novidades sempre me empolgam. Margeei a trilha do trem na Barra Funda, tomei um rumo da Lapa e subi até a região do City Lapa. Deixei o Rio Tietê para trás e, cruzando a pseudo-península paulistana, desci até a região do Rio Pinheiros.

Entrei no Parque Villa-Lobos, dei uma volta. Estava ali somando pouco mais de 15K, mas as pernas começavam a protestar ferozmente. 

Tudo, tudo começava a doer. Coxas gritavam. Tronco se desfigurava. Tornozelos se bambeavam.

Diminuí o ritmo – corrijo-me: o ritmo me foi diminuído pelo corpo.

Andei um pouco.

Forcei o pace.

Deixe a ideia dos 40K de lado: fui direto para casa. A casa, no entanto, estava a uns 10K de distância. 

Fui me arrastando, xingando a própria ignorância e temendo a sempre sádica planilha que, inevitavelmente, seria ignorada na semana.

O tempo voava e parava simultaneamente: enquanto os relógios na rua denunciavam que eu estava atrasado, o do pulso mostrava que o vergonhoso ritmo que me dominava era quase tão ágil quanto o de um cágado com sono.

Fechei os olhos por um minuto. Respirei. Segui reto.

E reto fui, ignorando paisagens e pessoas, até chegar na porta do meu prédio. 28km somados – 12 a menos que o planejado.

Amanhã tenho – ou teria – mais 20. Impossível.

A recuperação da semana passada foi menos completa do que eu previa. Prejudicou.

Talvez seja bom aproveitar melhor esta para completar o descanso. Ainda há um longo caminho, afinal, até o Grande Sertão.

Dois descansos

Não que eu tenha corrida à velocidade da luz – mas estava já me cansando do pace vagaroso que parece tomar conta das pernas quando treinamos para provas muito longas. 

Estava já me habituando a rodar na casa dos 6-quase-7 min/km, algo impensável no passado não tão distante. Não minto: estava até bem encaixado nesse ritmo, contente pelo volume que estava somando enquando rodava embalado por audiolivros e podcasts. 

O problema era chegar em casa e ver as estatísticas no Strava. Estatísticas servem, em muito, para isso: para nos deixarem constrangidos em nome do próprio ego e nos forçarem melhorias. 

Assim, com alguma gana, saí no final do dia de ontem. 

Saí sério, quase sisudo, com o objetivo de engolir uma meia maratona aparentando maldade nos olhos. Foi o que fiz. 

Saí doido a uma média de 5 min/km. Pode não parecer tanto para os mais elitizeiros mas, para mim, a essa altura, é. Folguei um pouco: fui para 5min30. Me mantive apertado, tenso, grunhido. 

Busquei parar no mínimo possível de semáforos. 

Varri o Ibirapuera por fora e por dentro. 

Serpenteei o caminho de pedrinhas. 

Ultrapassei os lerdos que corriam como eu estava correndo. 

Voltei furando o trânsito. 

Parei de súbito em frente ao portão do prédio.

Quando cheguei em casa estava com um outro tipo de cansaço no corpo. Presente, por certo, e fazendo as coxas reclamarem com as ideias – mas naquele tipo de reclamação que inclui um tipo de orgulho, quase de soberba, no tom. 

Ganhei com isso dois dias de descanso – hoje e amanhã. Descanso perfeito, aliás, dadas as quarto horas de rua que devo para o sábado. 

Mas esses dois dias, não me engano, servirão também para sossegar as têmperas e me fazer voltar ao foco de somar os quilômetros mais lentos e constantes, constantes, constantes. 

Teriam sido dois descansos? Por certo. 

Um, feito de pernas em movimento, para a ansiedade de ir mais rápido; e outro, feito de pernas para o ar, para tirar a eletricidade do sangue. 

Ambos foram muito bem vindos. 

Checkpoint: Curtindo a jornada

Depois da semana de descanso, que venha a intensa. Volumetricamente, aliás, bem intensa, ao menos pelos meus parâmetros: foram quase 95km, o mais que fiz desde o Cruce.

A “fórmula”, ao menos até agora, está funcionando: como comecei fresco, novo, realmente fechei o domingo impressionantemente inteiro – mesmo considerando uma quase-maratona ontem e uma quase-meia hoje.

Pelas próximas duas semanas o ritmo será igual ao desta. Imagino que chegue ao término da última ansioso pela semana de descanso – mas só esperando para ver.

Há algo de sensacional nisso tudo: o próprio ato de testar um modelo novo de treino, registrando semana a semana seus resultados no corpo, me deixa tão empolgado quanto se estivesse correndo uma ultra.

A jornada, por vezes, pode ser mais interessante que o destino.

Aumentando os longões na companhia de nobres espíritos

Em algum momento, afinal, chegaria o dia em que o volume de treino subiria para o compatível com a meta de 140K.

Bom… chegou. E, enquanto eu nutria algum receio quanto a treinos superiores a 4 horas, acabei esquecendo de como esse tempo todo sozinho com os passos faz bem.

E como fez. Primeiro, pela companhia: enquanto seguia rumo à USP e circundava seu percurso, os últimos capítulos do audiolivro Um Conto de Duas Cidades, de Dickens, me mantinham ocupado entre a tensão da Consiergerie e a exclamação da guilhotina revolucionária. 

Ele acabou, no entanto, antes da corrida. 

Fiquei um tempo sorvendo o final enquanto cruzava a ponte até o meu segundo destino, o Parque Villa-Lobos. A São Paulo daquelas bandas é outra cidade: arborizada, esportizada, despoluída nos mais diversos aspectos. Mas, entre passadas e pequenas rajadas de vento que pareciam acordar as folhas, senti vontade de alguma nova história. 

Histórias viciam; o tempo proporcionado pelos longos treinamentos de ultra são a agulha perfeita.

Parei e olhei o iPhone: havia um audiolivro baixado e ainda intacto, agoniado para começar a soprar suas palavras ouvido adentro. Era a hora perfeita.

Meia dúzia de cliques depois e estava saindo do parque e subindo a Cerro Corá ouvindo o Grande Gatsby. Outro tempo, outro continente, outra dimensão – mas o mesmo efeito de me surrupiar o pensamento para muito além de qualquer mero percurso.

E assim – com apenas uma ou outra parada para foto de paisagens urbanamente exuberantes, fiz meu caminho pela Heitor Penteado, Paulista, descendo a Brigadeiro, cruzando a Lorena e subindo de volta a Bela Cintra.

O relógio exibia 10:30 da manhã quando terminei os quase 40km rodados. Estava levemente cansado, claro – mas ainda imerso nos universos da Paris revolucionária e Nova York do seu primeiro surto desenvolvimentista. 

Era hora de pausar as histórias.

De respirar.

De olhar em volta.

De começar o dia.

[Repost] MIUT 2016 – DNF às 22:40 de prova

É sempre, sempre bom ler relatos de corredores experientes em provas espetaculares. 

Conheci o Lourenço lá na Douro Ultra Trail, em Portugal, e desde então ele tem feito algumas das provas mais incríveis que conheço. Como é normal no mundo das ultras, umas vão bem e outras, não. Mas todas, todas são essenciais para que nos entendamos e nos conheçamos melhor a nós mesmos.

Segue o relato dele:

Este post não é ainda o “relato épico” que estou a preparar. É uma análise fria do que se passou. Cerca do km 98 desisti no posto de controlo da Levada essencialmente por motivos de enjoo forte sempre que corria. Andar era tolerável, mas correr não e isto na parte mais rolante do percurso. Também […]

https://ultramaratona.wordpress.com/2016/04/26/miut-2016-dnf-as-2240-de-prova/

Vídeo: Caminhos de Rosa, parte 1

Recentemente, o André Zumzum, Diretor de Prova do Caminhos de Rosa, segmentou o documentário que fez no ano passado em 4 pequenos vídeos.

Já estou em pleno treinamento para a prova e com um nível poderoso de motivação. Nesses momentos, todo e qualquer material – fotos, vídeos, depoimentos etc. – é sempre bem vindo.

E, como há tempo até lá, vou sorvendo esse conteúdo aos poucos, um de cada vez, exatamente como costumamos correr ultras.

O primeiro segue abaixo: dá para sacar a força histórica e o calor intenso em cada cena.

Que venha agosto!

 

 

 

O outro lado do treinamento

Dizem que uma ultra se corre mais com a alma do que com o corpo.

Concordo, embora o corpo seja essencial para uma travessia com tantos quilômetros, vilas e cenários no caminho. Ainda assim, por melhor preparado que se esteja fisicamente, o nos permite engolir quilômetros decididamente não são as pernas.

Estas já estão em pleno treinamento para o Caminhos de Rosa com planilhas montadas, metas estabelecidas e controles rígidos pelo caminho. 

Agora, no entanto, é hora de preparar o coração e a mente.

É hora de mergulhar no sertão de Guimarães Rosa. 

É hora de deixá-lo entrar pelos olhos e fixar-se na alma, de onde sairá a meu socorro – assim espero – quando tudo mais falhar entre o Morro da Garça e Cordisburgo.

Hoje começa o treinamento dos olhos, do coração, da mente, da alma.

E não há planilha melhor para isso, claro, do que esse guia mestre.

Checkpoint: A calmaria que antecede a tempestade

Leve de verdade. É a primeira vez que reduzo tão drasticamente o volume de treino durante o ciclo de preparação de uma ultra. 

O objetivo: dar um pouco de tempo ao corpo para que ele se “cure” entre um micro-ciclo e outro, claro. Se está funcionando? Só o tempo dirá. 

No total, rodei pouco mais de 50K essa semana – bem menos que os 90 da anterior. Destes 50, metade foram entre ontem e hoje, uma concentração que talvez mereça ser repensada uma vez que as pernas acusam um cansaço incompatível com o que eu esperava para o final de domingo. 

Ainda assim, inegavelmente, estou fechando a semana bem mais light do que o fiz na semana anterior. Espero, também, que melhor preparado: os próximos 21 dias serão pesados, com uma média de 90-95K por semana. 

Faz parte, claro. Estranho seria rodar pouquinho e esperar completar os 140K do Caminhos de Rosa, sob o sol do sertão e com a aridez poeirenta como paisagem, inteiro.